Caminhava já há uma
boa meia hora com aquele passo largo e ritmado que a sua ainda jovem idade
permitia. Com a cabeça carregada de raivas e interrogações, e uma única certeza:
hoje iria tirá-la, ou roubá-la, que importância tinha, daquele sorvedouro de
areias movediças em que se debatia na ânsia de ter uma vida, se é que àquilo se
podia chamar vida. Só ele sabia quanto lhe custou subir para cima daquela pilha
de livros, para chegar à aldraba da porta do seu coração. Ao descer a Rua da
Beneficência não deixava de remoer aquela frase do Papa Francisco “enquanto não
houver comida para todos não haverá paz para ninguém”, como se fosse um velho
de ideias fixas, ou talvez lhe agradasse sentir-se velho para não achar
ridículo o amor que sentia por aquela que de anos já o tinha ultrapassado há
muito.
Tinha visto na
televisão, na véspera, o sorriso escarninho do VPM e a jaqueta florida da
Senhora Ministra, dois que de alimentação entendem, e de tanto repetirem o tema
dele sobrevivem, ele nos mercados, ela nos portos de pesca, na tomada de posse,
em ambiente de velório, de um moribundo à espera de um milagre de Nossa Senhora
do Rato. Que poderá vir a acontecer neste país de Fátima e de Jesus. A raiva
que lhe apressava o passo era a de pensar que, por um terço de quanto o
prisioneiro do 44, agora livre no 33, terá de pagar por fuga ao fisco (dizem,
que nestas coisas sou muito cuidadoso), tínhamos perdido 21,5 milhões de likes em Milão, os quais em vez de irem
para o pastel de nata ou para o Vinho do Porto, se dividiram entre a moamba, o
ceviche, o vatapá, escorpiões fritos e minhocas gratinadas, o perú e o
hambúrguer, a paella, o goulash, a raclette e o smörgasbord, para não alargar a lista às iguarias dos
140 países que lá estiveram, incluindo as nepalesas, que até essas não faltaram
apesar do terremoto. As interrogações que o faziam abrandar eram também elas
filhas do mesmo tema: Porque é que no País das Maravilhas ninguém ouviu falar
da Carta de Milão, documento de empenho e esperança e herança do tema da EXPO
2015: “Alimentar o Planeta/Energia para a Vida”? Não estivemos lá porque havia
muito mais para além do negócio? Quanto valem 21,5 milhões de likes? Será que o nosso lixo poderia
ser luxo para outros?
E, ora abrandando,
ora estugando o passo, foi-se chegando ao monstro sobrelevado que tomou o lugar
da passagem de nível do Rego, subiu os degraus de ferro de dois em dois e, ao
chegar ao lado de cá, deu de caras com uma jovem sentada no chão a tocar
marimbas. Parou a olhar e a ouvir, eram lindas, ela e a música, não se
atrevendo sequer a pensar deixar uma moeda no chapéu de coco andino que, por
terra, estava ainda vazio. Como vazia ficou também a sua cabeça que, esquecendo
raivas e interrogações, se deixou levar pela beleza que, no dizer de Dostoiévsky,
um dia salvará o mundo, sentou-se ao lado da jovem e, esquecendo
momentaneamente o motivo que o fizera passar por ali àquela hora, apeteceu-lhe
ficar naquela terra de ninguém, entre o Rego e o Bairro Santos, a aprender a
tocar marimbas com ela que, parando de o fazer, levantou os olhos para ele e,
com uma doçura infinita, lhe disse as palavras que tiveram nele o efeito de uma
mola que o fez erguer e correr dali para fora: - Seria bom, mas não te esqueças
ao que vais.
Recobrados os
sentidos, e o sentido, afastou-se com aquela música nos ouvidos e lá foi
palmilhando o caminho que o separava do seu objectivo e, afastadas de vez as
ideias negativas, deu-lhe para encadear episódios e conceitos retirados
“daquela pilha de livros” (concatena, Filho, concatena!), começando por
incomodar Homero que, chocando-nos a nós modernos, põe Menelau, não só a
felicitar Helena que o deixa, a ele e aos Filhos, para seguir o irresistível
Páris, episódio que desencadeou a Guerra de Tróia, mas a exaltar a sua decisão,
tudo isto numa absoluta ausência de revolta moral. Saltando de Homero
(politeísta) para Dante (um só Deus), que situa no Inferno (Canto V, 2º Círculo)
não apenas Dido e Eneias, Paolo e Francesca e Tristão e Isolda, mas também
Helena e Páris, aqueles mesmos louvados por Homero pela boca de Menelau, todos
“os que aos vícios da carne se entregavam, razão aos apetites submetendo”. E de
Dante a Kant, verdadeiro articulador do radicalismo de Descartes, que afirmou
que “se somos sujeitos auto-suficientes, então nenhuma lei, senão aquela que damos a nós mesmos, pode
determinar como devemos agir”, com cada sujeito a substituir Deus como
ordenador do mundo, tudo isto corroborado por Sartre, já que a principal
característica do existencialismo é a de atribuir ao Homem “ a total
responsabilidade da sua existência”,
desmentindo assim Homero (outra vez ele) que é absolutamente convicto
que quando Helena fugiu com Páris, o fez levada por Afrodite. Daqui é fácil saltar para Melville que, um
século depois de Kant e uma geração antes de Nietzsche, teve noção da crescente
ameaça do niilismo, pondo na boca de Ismael, o narrador da fatídica viagem do
Pequod (Escrevi um livro malévolo, mas sinto-me imaculado como um
cordeiro, escreveu ao seu amigo Hawthorn), que “ O tecelão Deus tece; está
ensurdecido pelo barulho do seu trabalho e não consegue ouvir nenhuma voz
mortal; e nós, que contemplamos o tear, estamos ensurdecidos pelo seu besourar;
e é somente quando nos afastamos que ouvimos os milhares de vozes que falam
através dele (Moby Dick, pg. 481).” Teve, no entanto, a percepção que a recuperação dos deuses de
Homero seria uma maneira de o superar: “ Se, no futuro, alguma nação altamente
culta e poética voltar aos primórdios dos alegres e primaveris deuses da
antiguidade, e os entronizar novamente no actual céu egoísta; na actual colina
deserta; podeis ter a certeza que o grande cachalote seria elevado e reinaria
no grandioso trono de Júpiter (Moby Dick, pg. 497).”
Chegado ao seu
destino, bateu à porta e, na espera, começou a pensar nela voltando a Dante,
que inspirou os chamados trovadores franceses a desenvolver uma nova maneira de
entender o amor; não o desejo erótico grego nem a ágape cristã, mas um sentimento novo, o amor cortês ou romântico,
que implicava “devoção total a uma pessoa que se tornava o centro da nossa
vida”. Como Beatriz e foi para o génio florentino e Ofélia para todos os
Pessoas que teve de aturar. Ou Helena e Páris? A porta abriu-se finalmente, ela
encarou-o sem temor ou sentimentos de culpa, como se estivesse à sua espera,
pegou-lhe na mão e levou-o até à sala de jantar, onde à volta da mesa posta
estavam sentados o Marido e os Filhos, estes mais ou menos da sua idade. Espera,
disse-lhe, e pegando na sopeira serviu cada prato, incluindo o seu próprio,
sentou-se, formulou um firme “bom apetite” e todos comeram em silêncio perante
aquele “convidado de pedra” que não podia ser outro que um emissário de poderes
mais altos. Levantou-se então da mesa com um “volto já”, saiu a porta da sala e
regressou com um casaco vestido e uma bolsa a tiracolo. Vai correr tudo bem, disse,
mas não sei se, ou quando, voltarei; pegou-lhe novamente na mão e saíram de casa.
No ascensor (sempre os ascensores), sem uma palavra, deu-lhe o beijo que,
vivido dez andares, não esquecerá nunca mais.
Já na rua, entraram
no carro que tinha ficado ali estacionado à espera que ela descesse, como
prometido, e ele acordou com o barulho do fechar da porta, ficando meio
estremunhado a olhar fixamente para o lugar vazio ao seu lado, a tentar
perceber o que se tinha passado. Num gesto automático ligou o rádio que passava
uma versão de “El Condor Pasa”, tudo marimbas e flauta de Pan, olhou
para cima e pareceu-lhe ver a sua sombra
por detrás do nevoeiro (Eco, Eco, Eco, Eco…) das cortinas da janela da sala, a
acenar-lhe com a mão um longo, lento, simples mas significativo Adeus.
Abraço.
Lisboa, 5 de
Novembro de 2015
Octávio Santos
Caro Autor
ResponderEliminarBelíssimo!
Caro (a) anónimo (a),
EliminarMuito obrigado, mas não mereço tanto. O seu comentário, que devia ser para mim ambrósia e mel, torna-se em mel e fel já que, o bom que é ler “belíssimo” obriga-me a um amargo (e duro) esforço para tentar fazer melhor da próxima vez.
Abraço
Octávio
Caro cronista,
ResponderEliminarTanta hipocrisia e falsa erudição, misturada com açucar e canela dá-me vontade de vomitar. Uma coisa transparece como auto denúncia: a inspiração de Santos é mais intensa ao aproximar-se do Rego.
Sem rancor
Caro anónimo sem rancor,
EliminarÉ também sem rancor que respondo porque é tempo de ser bom e todos sentimos ter obrigações com quem está pior que nós, e já que fui visitar um manicómio entre o Natal e o Ano Novo porque não responder-lhe? Fique tranquilo que isso vai-lhe passar. Quanto ao sentido de humor que lhe resta, já ouvi muito melhor (pior) na televisão, mas não deixe de insistir porque um dia conseguirá escrever alguma coisa com graça se continuar a frequentar essa escola.
Octávio Santos (anónimo nunca!)