Hoje é fácil porque me bastou encontrar
por acaso um cruzamento que fiz de um pequeno texto meu com versos do Cântico
dos Cânticos, para me despachar, embora correndo o risco do vosso julgamento, seja
pelo atrevimento de misturar coisas minhas com textos sagrados, seja pelo
resultado final da blasfema ousadia. O que é meu, “A Última Tela de Picasso”
(A), datada de 3/4/2012, é o último texto do meu livro “Moínho de Vento,
23”, na página 141, e não passa de “um sonho, daqueles que não sabes se estás a
dormir ou acordado, e depois de manhã, te deixa umas ideias (neste caso,
pinceladas) esbatidas e fugidias no quarto dos fundos do teu cérebro, entre
falsas e verdadeiras, entre reais e virtuais”. Do “Cântico dos Cânticos”, que li
na íntegra para poder escrever o texto “Subsídio para a ressurreição de
Roseta”, a páginas 23 a 28 do acima citado livro, retirei versos que, no meu entender,
poderiam ser intercalados no meu “sonho”, conferindo-lhe a sacralidade a que
aspirava desde a sua escritura; e assim foi ao fim da tarde do dia 26/10/2013,
numa varanda emoldurada de buganvílias entre o Alentejo e o Algarve,
acompanhado de imagens que tinha gravadas das esculturas “Êxtase de Santa Teresa” e “Êxtase da Beata Ludovica Albertoni”, ambas
de Bernini, tantas vezes admiradas em Roma, nas igrejas de Santa Maria della
Vittoria e de San Francesco a Ripa, respectivamente, esculturas só possíveis
pelo aval que a inspiração do Cântico dos Cânticos deu ao genial artista para
imortalizar estas duas figuras da Igreja, transformando inconveniente erotismo
terreno em permitidos arroubos de amor divino. Assim, revelo hoje, sob a
protecção de uma bolinha vermelha não vá algum Senhor Rohani ter a tentação de
vir espreitar o meu blogue e deparar com mulheres que, apesar de todos os véus,
poderiam provocar-lhe pensamentos pecaminosos fatais para a salvação da sua
alma, revelo eu, dizia, o matching (é
assim que se diz, não é?) de textos poéticos que, espero, não venha a ser a
perdição da minha.
A Última Tela de Picasso à luz do Cântico dos Cânticos
Visitei
o velho Picasso (com razão as raparigas amam-te)
no último dia das nossas vidas. Ele sentado (o rei
está em seu divã) num cadeirão capitonné
de pele gasta e rota (o encosto é de ouro),
diante de uma enorme tela branca, esmagado com o peso (que
se eleva do deserto como colunas de fumo) dos
seus noventa e dois anos e dos 1654 mortos de Guernica, que carregava
perenemente.
Eu
(dormia mas de coração acordado), sentado
num escabelo a seu lado, oprimido pelo peso do génio malagueño e pela pesada
incapacidade de não saber viver (ao jardim das
nogueiras desço). Tu (ó mais bela das mulheres),
de pé, recebias sobre a tua luz intensa (contra
mim resplandeceu o sol), a luz menor de uma clarabóia no tecto e olhavas
(afasta de mim teus olhos os olhos que me
enlouquecem) absorta a cena a que não pertencias (Ah como estás bela minha amiga).
Então,
de golpe, naquilo que seria a sua última obra, Pablo Ruiz levantou-se,
dirigiu-se a mim e agarrando-me pelos ombros (o meu
amado é para mim e eu para ele), como se fosse um trapo, com a sua força
hercúlea, atirou-me contra a tela virgem da qual passei a fazer parte (o meu amado desceu ao seu jardim).
Olhou
para ti (deixa-me ouvir a tua voz),
roubou-te os olhos que pôs dentro de uma patena (olhos
como pombas), colocando-a na minha mão direita (no
dia em que a alegria era seu coração) de onde os meus olhos não se
despregarão mais, como acontece nas imagens de Santa Rita de Cássia. Colocou a
tua mão piedosamente (que doces tuas carícias minha
irmã minha noiva), como sudário, sobre o meu sexo morto sem químicos, os
teus lábios (beije-me com os beijos da sua boca)
transformaram-se em borboleta esvoaçando diante dos meus sem lhes tocar.
Cortou-te o cabelo que enrolou à volta da minha testa (sua
cabeça é de ouro maciço), como se de uma coroa de espinhos se tratasse (teu cabelo era um rebanho de cabras). Os teus
braços foram colocados em torno da minha cintura (e
eu sou já puro tremor), servindo de cilício que, em vez de mortificar, aliviava.
Na minha mão esquerda foi posto o teu seio branco, cheio, redondo (teus seios são dois filhotes gémeos de uma gazela),
cuja visão, peso e pormenor de boina basca (sejam
teus seios cachos de uvas), me enchia os olhos e a vida. O teu púbis foi
delicadamente colocado (saboreio o favo com meu
mel), com todos os seus segredos escondidos (sem
censura de ninguém), na minha testa,
entre os meus olhos (porque desfaleço de amor),
e ali ficou como a sarça ardente de Moisés a iluminar-me a mente para a
eternidade (minha vinha é só minha).
O
teu umbigo (uma taça redonda) foi delicadamente
colado ao meu (no meu leito toda a noite procuro), unindo-nos na origem da criação. O mesmo foi
feito com os pés que (quão formosos… nas sandálias),
agora a quatro, teriam de calcorrear os mesmos caminhos; aqueles certos (entra o meu amado no seu jardim e come seus frutos
doces).
Nesse
momento, o pintor caiu e morreu. A obra (aquela que
traz a paz) ficou suspensa num limbo entre uma espécie de verdadeira
vida e uma sorte de falsa morte (porque forte como
a morte é o amor). A luz da clarabóia intensificou o seu brilho até ao
paroxismo de se igualar à tua (levanta-te minha
amada) e sugou-te milagrosamente inteira (quem
é essa que desponta como a aurora), numa Ascensão (não tenha de vaguear oculta), para uma vida cá fora (lá
te darei as minhas carícias), que tudo fizeste para merecer viver (roubaste-me o coração minha irmã minha esposa).
Monte
Crato, 26 de Outubro de 2013.
PS:
“É necessária toda a vida para voltarmos a ser crianças.” Pablo Picasso
Abraço.
Lisboa, 4 de Fevereiro de 2016
Octávio Santos
" ...ficar
ResponderEliminarredonda e inerte
no pomo saliente adâmico
entre o fundo
e a forma
da palavra"
Séshat, Aquela que Escreve
Caro(a) Anónimo(a), seja quem for, perdoado (a) pelo belo que é e pelo bem que me soube,
EliminarSéshat (Katastrophe?), Aquela que Escreve (entre 3100 e 2850 antes da nossa era)
“Passa o dia a escrever com os dedos e à noite lê. Seus amigos são o rolo de papiro e a paleta e nada há que mais lhe dê prazer. Para quem a conhece, a Escrita é uma aventura maior do que qualquer outra profissão, mais agradável que o pão e o vinho, as vestes e as essências. Mais preciosa do que uma herança no Egipto ou um túmulo no Ocidente”.
A violência da luz, de Albert Camus.
Abraço
Octávio