No meu último texto falei dos crochets da Joana Vasconcelos para
comparar a sua estrutura esburacada com aquela da minha cultura, e disse que
navegar na net era como trepar a uma
cerejeira, só descendo depois de uma barrigada dos frutos que lá se colhem, evitando
os podres. Acontece que esta semana a minha subida à árvore provocou enormes
rasgões no tecido das minhas incertezas culturais, sentindo-me agora como um
economista português, daqueles que nos explicam a inevitabilidade da
austeridade, embasbacado diante a um quadro de Pollock.
Tudo isto porque sonhei ter visto numa poubelle de Versailles o lustre de Tampax que a nossa insigne
artista convenceu os franceses a pendurar no Palácio do Rei Sol, o que
provocou, não só os protestos dos conservadores gauleses, como aqueles da
ANUTOB – Associação Nacional das Utilizadoras de Tampões O.B., invocando par conditio.
Mas voltemos à realidade que, desta vez, ultrapassou os meus
sonhos. A semana passada (andava eu por aqui às voltas com anjos), em Bari,
estava pronta para ser inaugurada no museu desta cidade do Sul da Itália, uma
instalação intitulada “Display Mediating Landscape”. Na manhã do dia previsto
para a abertura da mostra, a Senhora Anna Macchi, encarregada da limpeza do museu,
entendeu dar uma varridela e deitar para o lixo as obras de 5 dos 40 artistas
co-autores da dita instalação, não sem, antes de ter chamado o carro da empresa municipal que se ocupa de
fazer desaparecer os resíduos inúteis da cidade, o qual levou tudo para a
lixeira, ter partido, na sua labuta, umas bolachas tipo petit beurre que eram parte integrante do trabalho artístico.
Inconsciente da gravidade da sua acção, que provocou danos no valor de 10/12
mil euros, a Senhora apenas repetiu que não fez nada de mal e que se limitou a
fazer o seu trabalho como todos os dias, isto é, a pôr o lixo no lixo. – Eram
só umas caixas de cartão e alguns jornais: nunca pensei que aquilo fosse arte! disse
a diligente Senhora.
O gerente da empresa de limpezas para a qual a senhora Anna
trabalha, pediu desculpa pelo sucedido, disse que a Senhora é uma pessoa
honesta e meticulosa que faz bem o seu trabalho, que está muito incomodada com
o sucedido, mas que a sua seguradora pagará todos os danos. Já o assessor de
marketing do museu declarou que o sucedido ” é mérito dos artistas que souberam
interpretar da melhor maneira o intrínseco sentido da arte contemporânea, isto
é, aquele de interagir com o ambiente que nos rodeia”. Mas há quem se interrogue:
- Este episódio deve suscitar algumas perguntas; porque é que este incidente se
verificou com uma peça de arte contemporânea? É esta uma verdadeira arte? Se
sim, porque é que não é conhecida, apreciada e respeitada como as obras
clássicas?
Genial a ideia da autarquia de Bari que convidou a Senhora Anna
para interpretar o papel de uma severa e atenta inspectora dos bens comuns, do
decoro dos monumentos e da limpeza da cidade, num spot publicitário institucional, no qual a senhora vai admoestar
aqueles que deitam papéis, maços de tabaco vazios ou cascas de tangerina para o
chão, ou tratam imprópria e vandalisticamente o mobiliário urbano e os monumentos.
Tudo isto me leva a recordar que, após a indescritível barbárie
do Primeira Guerra Mundial, um grupo de artistas, horrorizado com aquilo que o
homem era capaz de produzir, resolveu fazer tábua rasa de todas as realizações
humanas até então, por as considerar indignas, incluindo a arte. Assim, uma
noite, no Cabaret Voltaire, numa rua de Zurique, a mesma onde vivia e pior,
pensava, Vladimir Ilitch, dito Lenine, decretou a morte da arte existente e
propôs uma nova, à qual nem sabiam que nome dar. Alguém então se lembrou de
abrir ao calhas um dicionário francês, e um dedo indicou a palavra Dada que, em
linguagem infantil significa cavalinho de baloiço. Nasceu o Dadaísmo, e a sua
obra mais significativa será para sempre o urinol que Marcel Duchamp virou ao
contrário e chamou Fonte.
O italiano Piero Manzoni exagerou e encheu 90 latas de folha de
flandres com as suas próprias fezes, fechou-as hermeticamente e colou-lhes uns
rótulos que indicavam em várias línguas o seu conteúdo: “MERDA DE ARTISTA”.
Hoje, as poucas que existem - já que muitas explodiram pela fermentação da intestinal
arte contida, e outras, corroídas pela acidez do tesouro que escondiam,
deixaram verter o precioso sub-produto do genial artista, ficando os seus
proprietários com aquilo que realmente tinham adquirido, isto é, Merda! – Estão
no mercado a preço de ouro, demonstrando que a razão está do lado do crítico de
arte italiano, Vittorio Sgarbi, que diz que o valor de uma obra de arte é o
resultado de uma equação complexa que tem como incógnitas o número de olhos que
a admiraram ao longo dos tempos, e tudo aquilo que sobre ela se for escrevendo.
Estou em crer que, como sobre a instalação de Bari, violada pela
Senhora Anna, já escorreram rios de tinta de escrever, e como toda a cidade,
província e região farão fila para a admirar, esperando-se mesmo visitantes de
toda a Itália e até do estrangeiro, a “obra de arte” atingirá valores que
tornarão ridículos os 111 milhões de euros que o Barcelona pagou pelo Neymar
(metade no negro).
Acontece-me sempre o mesmo quando escrevo; começo a ficar
confuso para o fim na ânsia de acabar. Assim, vêem-me à cabeça três coisas:
- que uma outra obra de Marcel Duchmap, “O Secador”, está no
CCB, no Museu Berardo, e que diante da porta de entrada está uma versão gigante do mesmo, da autoria
de Joana Vasconcelos, que lhe acrescentou as garrafas e umas luzes. Cópia ou homenagem a um dos pais do dadaísmo?
O certo é que a sua arte lhe dá-dá muito lucro. Legítimo e merecido, por amor
de Deus!
- que tentando também eu fazer uma obra de arte, fiz uma colagem
com pedras, pedaços de madeira e uma
guita, que intitulei “O ET não regressou
home”, a qual me foi subtraída pela
proprietária de uma galeria de arte de Lisboa, onde fiz uma das apresentações
do meu primeiro livro. Não disse roubada
com receio de ser processado pela Senhora, já que em Portugal quem arrisca a
cadeia são os que denunciam e não os prevaricadores. Já alguma vez leram ou
ouviram que dois dos amigos do nosso Presidente da República, um é ladrão e o
outro, para além de ladrão é também assassino? Tá bem abelha!
- que, no Coliseu, que quando era pequeno era sala para ir ver
palhaços, caíram lá todos, os esperados
e os não esperados, na ânsia de debitarem a sua rábula na esperança de
conquistar um lugar, não na consideração e respeito do povo, mas no “Cantinho dos Artistas”, naquele que
foi mais um festival de stand up comedy.
Tiro o meu chapéu a uma Senhora que, sacrificando
a um Deus hoje obsoleto, a coerência, não atravessou as ombreiras das Portas de
Santo Antão.
Infelizmente o espectador, nós todos, os espectadores da arte e
da política, continuamos (até quando?) a admirar, aplaudir e a engolir a merda
que nos é servida. But, the
show must go on!
Lisboa, 27 de Fevereiro de 2014
Octávio Santos
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