A Carlota tinha mesmo a intenção de nos pôr à prova; com aquele seu ar
inocente viu-se que tinha o “dente afiado” para, ao espalhar armadilhas no percurso
de obstáculos que nos propunha, nos saltar ao pescoço e fazer sangue. E
vá de citar Marivaux, Rodari e Paul Nougé, depois de nos fazer tirar à sorte
uma carta de jogar enriquecida com uma frase simples, e escolher uma outra
frase retirada de três obras gráficas, voltando à Marginalia de Pedro
Casqueiro, desta vez com a colaboração de Ana Jotta.
O tema, corrompendo “O Jogo do Amor e do Acaso” de Marivaux - que criou o
neologismo marivaudage para designar
as questões morais de um indivíduo, particularmente em relação ao casamento -,
seria “O Jogo das Cartas e do Acaso”, e teriam as “vítimas” de compor um texto
usando a ausência de relação aparente entre as duas peças, aquela extraída do
baralho e a outra escolhida a nosso bel-prazer. A carta que me calhou em sorte
foi a manilha de espadas com um “Através das Janelas” que me abriu o mundo
todo. Sempre sorte. A frase que retirei da obra de Casqueiro foi “A Eterna nos
teus braços…Eu sou a Pequenina”. Ambas na imagem.
Mas porque é que eu, um técnico de comércio externo, me meto nestas coisas
vendo-me aflito para me livrar delas? Paul Nougé, um dos citados pela Carlota,
poeta e pintor belga amigo de Magritte, era da opinião que “o vocabulário do
amor nos espanta pela sua pobreza”, mas escreveu também que “o interior das
vossas cabeças não é essa massa cinzenta e branca que vos impingiram; é uma
paisagem de nascentes e ramos, uma casa de fogo, melhor ainda, uma cidade maravilhosa
que vos dará gozo inventar”. Daí eu mergulhar de cabeça no desconhecido,
porque mesmo sem a pretensão de inventar um vocabulário mais rico, me dá um
gozo infinito inventar a minha cidade, e sobretudo os seus habitantes. Posta
esta premissa, mais um tijolo mal cozido na minha “fama” de intelectual, vamos
ao texto que alinhavei, sempre em 45 minutos.
A primeira coisa que me ocorre é o Presidente da República, e
perguntar-me-ão o que é que esse personagem tragicómico, que me lembra sempre
um manequim da Rua dos Fanqueiros, associação de imagem abusiva porque os
manequins nunca fizeram mal a ninguém, mas ao mesmo tempo pertinente porque
ambos acabarão no lixo, tem a ver com a história? Ocorre-me porque o PR está, e
estará, na China até Domingo para abrir aos Senhores do Império do Meio o
catálogo de vendas de um Portugalzinho em saldos de liquidação, e eu aprendi
que o 4 era o número da morte para os chineses quando lá estive integrado na
comitiva do Presidente Jorge Sampaio há quase dez anos. Isto para dizer, não
só, que a China não foi descoberta agora, mas também, para vos dar conta do meu
espanto pela virtualidade da ausência do 4º andar nos hotéis onde alojei: não é
que havia um vazio entre o 3º e o 5º, levitando o edifício daí para cima, mas
que o 5º assentava sobre o 3º numa demonstração que quem manda pode fazer o que
bem entender que as pessoas aceitam e aplaudem. Ainda na passada Segunda-feira,
eu que não digo basta às touradas mas nunca entrei numa praça de touros, ouvi
nos Prós e Contras da D. Fátima o ganadeiro/veterinário Joaquim Grave afirmar
para quem o quis ouvir que os animais não têm direitos, o que arrancou uma
salva de palmas à assistência e um sorriso alarve ao seu companheiro de banco.
Não tem nada a ver com a China, mas reis e reizinhos, sejam de grandes impérios
ou de alguns hectares no Ribatejo, podem continuar a passear nus pelas ruas das
cidades sem que alguém disso dê conta. Arquivada a China recordando o fim do
famoso “Bando dos 4”, só faço votos que os nossos 40 ladrões sejam poupados em
nome da civilização, embora não desdenhasse vê-los, não como castigo mas como
prova de coragem, no Campo Pequeno a pegarem um touro sem os cornos serrados e
embolados; quer dizer, em igualdade de circunstâncias.
Depois foi só jogar às cartas e às flechas, fazer batota pegando em frases não
escolhidas e citar o Rei Mago que nos roubou o ouro para se ir sentar num
cadeirão dourado, porque me deu gozo inventar a minha cidade, numa roleta de
emoções entre o sonho e o desejo e uma girandola de cadavre exquis num Disco de Festos, baralhar todos os naipes numa
alusão ao pesadelo que estamos a viver, corromper “A Gramática da Fantasia” de
Gianni Rodari, libertar as palavras acasalando-as de forma fantasiosa e criando
a história impossível de um chinês Super-Homem para salvar a improvável
possibilidade da criação de um binómio fantástico
– sempre Rodari -, que cada vez mais distante não é impossível. Nada é
impossível.
Nestes últimos dias aconteceram-me tantas coisas imprevisíveis, sem que um
milagre me viesse retirar do cenário do meu filme, esperando-o agora para
quando Deus quiser, embora veja muito nevoeiro através das janelas.
Lisboa, 15 de Maio de 2014
Octávio Santos
Culturgest
Fundação da Caixa Geral de Depósitos
Escrita criativa
4 de Abril de 2014
Exposição Marginalia de Pedro Casqueiro
Tema: Jogo das Cartas e do Acaso
Elementos: Uma carta de jogar - 7 de espadas - com a frase “Através das
Janelas”
Obras:
Pequenina cegueira, 1996 (da qual retirei a frase)
Colagem e acrílico sobre tela, Colecção A.J.
Solitaire Universal, 1994 (Pedro Casqueiro & Ana Jotta)
Fita Dymo sobre caixas de cassetes, prateleira de madeira, vidro, Colecção
da Caixa Geral de Depósitos
Sem título, 1995 (Pedro Casqueiro & Ana Jotta)
Fita Dymo sobre k-line, Colecção A.J.
A data de hoje tem 3 quatros número da morte para os chineses e se me tem
calhado o 4 de espadas tinha saltado “Através das Janelas” do palácio e a
história tinha acabado aqui. Mas tocou-me o 7 sempre de espadas prefiro o 3 mas
penso que somado com 7 faz 10 que é o máximo no jogo das flechas e assim começo
bem, É “Através das Janelas” que a carta me abre que vejo um 5 de espadas na
parede dentro de uma mão e sonho com um universo sem pares só ímpares mas tenho
de escolher uma frase porque a Carlota o impõe apetecia-me escolher mais e vou
romper o regulamento porque duas frases se completam para uns uma esperança
para outros uma ameaça:” o Gaspar está a chegar” e “a corrida aos cadeirões
dourados” deve estar para começar ou continuar digo eu mas agora acabou a
brincadeira não o jogo porque estou com as cartas na mão e vamos lá respeitar as
regras da bisca ou da sueca e finalmente escolho a minha frase que me entrou
nos tímpanos como se fosse gritada por alguém “Através das Janelas” alguém que
se quer libertar de qualquer coisa e esse alguém existe e está vivo tanto que
ao escrever isto senti qualquer coisa de muito doce a roçar-me os cabelos mas
não dei importância porque ultimamente tenho lidado com anjos e a voz gritada
talvez pelo anjo que passou por aqui dizia com um eco infinito “A Eterna nos
teus braços, sou pequenina” e o eco repetia-se e repetia-se “Através das
Janelas” do meu 7 de espadas que não são daquelas de ferir mas de defender e
deixam entrar todas as frases do Pedro Casqueiro que se completam num cadavre exquis que como um tornado
formam um Disco de Festos onde têm lugar todos os naipes copas paus e ouros
embora nestes tempos em que muito necessitamos não de gramática mas de
ginástica para não perdermos a fantasia eu prefira os paus para os usar contra
quem nos está a roubar os ouros deixando-nos só as copas para bebermos o fel da
nossa amargura e desespero. Debruço-me nas janelas por onde entra o
grito/lamento da pequenina e vem-me a fantasia de imaginar que afinal sou
chinês e me saiu o 4 de espadas ou de outro naipe qualquer e lanço-me “Através
das Janelas” vendo com estupor que a pequenina dos lamentos que fazem eco
volteia a cair no espaço e aí o chinês veste o macacão do Clark Kent e voa para
a salvar agarrando-a no último momento e fechando este texto feliz por ter
formado um binómio fantástico com “ A Eterna nos teus braços”.
Octávio Carmo de Oliveira Santos
PS: Este texto inspirou aquele outro editado em 10 de Abril, intitulado
“Escrita criativa (com prólogo de raiva adiada e inveja pertinaz) à mesa de
jogo das cartas e do acaso, "marivaudage"
bucólica de (des)educação sentimental e avulsa descoberta das coisas da vida”
Como sempre, um post que é um prazer de ler para os olhos, o coração e o resto todo...
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