Ouvi ontem a uma grande repórter de guerra que as qualidades
necessárias para fazer o seu trabalho eram a curiosidade e a honestidade. Lembrei-me
então da foto do meu texto da semana passada e, se é certo que foi a
curiosidade, mas também o sentido de oportunidade, que a grande repórter omitiu referir,
que me levaram a encostar o telemóvel à figura daquele velho desgraçado, talvez
não tivesse usado a necessária honestidade para o fazer. À primeira vista
aquele morto adiado pareceu-me uma imagem forte para ilustrar o que tinha já em
mente escrever de acusatório contra circunstâncias, poderes e pessoas que o
levaram àquela situação de dormiente
no portal da Igreja do Corpo Santo. Mas vamos que aquele homem não quis estudar
quando era pequeno, preferindo a trapeira à sacola dos livros e cadernos,
começou a fumar aos 12 e a meter-se nos copos aos 15, na ganza aos 16, não suportou a dureza da
construção civil aos 17, andou nas putas a partir dos 18, fez o seu primeiro pequeno
roubo aos 20, recusou a Casa Pia (porra!) ou a Casa do Gaiato para não perder
os proventos que lhe vinham dos diversos tráficos que entretinha com a
marinhagem americana e francesa no Cais do Sodré, quem é o culpado senão ele próprio?
Se assim foi, é certo que não usei de honestidade servindo-me de um ícone fácil
para apontar leviana e imerecidamente o dedo à corja que nos governa por
interposta freenança, mas apetece-me
reincidir para dar um rebuçado àqueles crentes, e são muitos, que veem em Deus
um ser vingador pronto a castigar quem se comportou sempre mal, deixando-o “justamente”
a apodrecer diante da porta fechada da sua (deles) Igreja, sempre escancarada
para quem bater no peito é um acto de contrição automático e gratuito, que
tantos juros dá neste Vale de Lágrimas, esperando que se perpetuem no Reino dos
Céus.
A escrita, que é feita de palavras alinhadas, tendo as mesmas
virtudes e defeitos destas, tal o de serem como as cerejas, leva-me, a
propósito de honestidade, direitinho ao Isaltino por o ter visto sair da
Carregueira, magro, bronzeado e com um saco de plástico preto, habitualmente
para lixo (longe de mim qualquer alusão ao GES), que continha, suponho, os seus
parcos pertences de presidiário, a entrar para um Audi dos grandes igual ao da
factura da sorte. A Carregueira, que não tinha a notoriedade de hoje quando eu
fiz a tropa, estando ainda à espera da parte da reforma que me compete por via
desses 43 meses, ou seja, 5% da minha vida caso morresse hoje, era uma Carreira
de Tiro onde íamos exercitar a pontaria que nos havia de servir em África
contra alvos móveis e ainda por cima escuros, e não uma unidade carcerária do
Sistema Prisional Português (lindo!), onde o quem sabe se honesto Isaltino saiu
agora de pulseira com a pompa mediática que lhe foi reservada.
Soube agora, mas nem sob tortura revelarei a minha fonte, que um
nutrido grupo de Senhoras obesas, histéricas, ou com tendência para ambas,
fartas de não obterem resultados palpáveis (salvo seja) com as dietas do Dr. Tallon,
Dr. Atkins, Herbalife, Detox, Dukan, dos 31 dias, das Princesas, das lojas LEV - comer
para emagrecer -, Celeiro e Miosótis, se estão a organizar para fazerem uma manifestação
junto do Ministério da Justiça a fim de exigirem o internamento a tempo
indeterminado na citada unidade carcerária com as mesmas regalias e benesses de
que usufruiu o ilustre predecessor. Em comunicado que está para vir a público,
ameaçam, em caso de recusa por parte da Senhora Ministra, vir a cometer acções
passíveis de detenção, tais como roubar peças de roupa interior nos caixotes
dos saldos do El Corte Inglès, dizer em público do Senhor Presidente da
República e Excelentíssima Família aquilo que Bin Laden não disse da
entremeada, promover um abaixo assinado para impedir a Guiné Equatorial de entrar
na CPLP, pedir a demissão do Paulo Bento e o retiro da nacionalidade ao Pepe
(não sendo a Madeira ainda independente não podem pedir outro tanto para o
CR7), fazer chichi na escadaria de S. Bento com o rabo virado para a Fundação
Mário Soares para não ofender o recato do ancião patrono, revelar que o porta
voz do BES já foi substituído pela porta voz da SIBS, e outras acções
subversivas anti regime em estudo. Estamos atentos para ver se conseguem levar
a água ao seu moínho.
Juro que me daria muito gozo, mas estou disposto a apostar que não
vai acontecer, ver a Terceira Pessoa da Santíssima Trindade, também por si trina
devido ao milagre da multiplicação dos pães (A), a dividirem com as acima
citadas empreendedoras Senhoras as celas da Carregueira, o Sol no pátio se o
preferirem ao solário, a canasta ou o king
no fumoir, o escolher da ementa
biológica do dia no refeitório e do programa televiso da tarde: Pinheiro ou Goucha?
Por questões higiénicas dividiria a sauna por géneros, pois que não estou a ver
pombas tão alvas a mancharem as penas de gordura se, por acaso ou imperativo
hormonal, na estreiteza do local, se encostassem às Senhoras que estão lá para
a destilarem.
Com o calor deste Verão que tardou a chegar, fechado em casa a
escrever, e esta imagem das saunas finlandesas, uma a escorrer banha e a outra
a contaminar-nos com a criptococose (B), ligo o ar condicionado, mas mesmo
assim não satisfeito ponho-me a recordar o nevão que embranqueceu Lisboa em
1951 e, como esse foi um ano importante na minha vida, lá descaí para a
pieguice e a minha alma de poeta de feira (também há poetas pimba?) acaba por
vir ao de cima, até como acção de desintoxicação dos temas acima versados.
O Nevão de 51
Quando se tem apenas sete anos feitos
Ter em casa novidade assim
Que maior que um novo Irmão não pode ser
E pensas ser feliz em Maio
Embora paire no ar um estranho peso
Que está para se abater sobre o menino
Abalando tudo aquilo que o rodeia
Sem saber o porquê desta lei parva
Que obriga a que alguém vá quando outro chega
Lei que só mais tarde
(muito mais tarde)
Percebeu justa e defensora
Porque separa as águas
Evitando roturas dolorosas
Neste mundo mutante
Habitado ontem por heróis
Hoje por espertos
Que fez de Pombal um salvador
Quando hoje seria um bom estupor
Endeusou a Terceira Pessoa
Como luz e pão de uma nação
Abrindo nós agora a boca
Ao lixo acumulado
Só porque um tapete é levantado.
Entre esse Maio de aleluia
(que agora amargamente choro)
E o Dezembro da agonia
Que me levou o único Avô
Que me sentava ao colo
E me ensinava malandrices
(O meu amor é da música
E toca clarinete
Quando vai para o ensaio
Lava o cú com sabonete)
- Não digas nada à Avó!
Veio o nevão, novidade absoluta
Que pregou o menino à janela
Das traseiras do Moínho de Vento
A ver brancos os campos da Tenente Valadim
E a passar os carochas, as joaninhas e os matateus
Todos rigorosamente pretos
Com os tejadilhos e os capôts
Alvos daquele pó branco do céu
Que para o menino era maná
De aproveitar hoje que amanhã já não há!
Abençoada neve de mil novecentos e cinquenta e um
Precedida de um Irmão, que já foi para onde ela veio
Cinco dias antes de completar 63 anos
E prenunciadora da partida de um Avô
Dezassete dias antes dos seus 64 anos.
Tudo se repete por ordem desta lei parva
Que obriga a que alguém vá quando alguém chega
Coisa que agora o menino já percebe.
Um abraço
Lisboa, 17 de Julho de 2014
Octávio Santos
(A)
Pão, em português do
Brasil, significa Borracho, isto é, macho bonito e apetecível, daqueles que matam
cabras com o olhar
(B)
Criptococose é a
doença que ataca os pombos metropolitanos, tornando-os nocivos para os humanos
Boa maneira de começar a manhã, não sei do que mais gostei se da prosa se do verso. Já que vais de férias, diverte-te muito e por favor não deixes de escrever. Beijo.
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ResponderEliminarCara Azinheira,
Eu que acordo às 6 e meia, 10,17 é já manhã alta, mas sempre boa para apreciar prosas e versos; melhor se fossem de qualidade. Nas férias tenciono escrever qualquer coisa debaixo de um chaparro. Beijo
Octávio
Ostinato Variable, só agora comecei o m/dia online e a primeira coisa que fiz (depois de ver a m/caixa de correio) foi ler o s/blog porque Hoje é Quinta-Feira. É mesmo Variado, quer a prosa quer o verso. Li primeiro a prosa, sem saber que viria o verso. A prosa sobre a honestidade das fotografias de guerra (em tempo de guerra ou paz) foi a que mais me tocou. O verso sobre a Neve em 51, de que me lembro bem, também é Variado, porque mistura emoções de ver a Neve em Lisboa com acontecimentos que emocionam as famílias, qualquer família, que é ver a morte de perto, sobretudo em criança (DFC).
ResponderEliminarCara Deolinda,
EliminarObrigado por te lembrares às quintas feiras, após leres coisas mais importantes que alguém te transmite, daquilo que um aVariado como eu pode escrever em prosa e verso. O Nevão de 51 foi daquelas coisas inesquecíveis que, para mais, serviu de refrigério ao ano demasiado quente em acontecimentos para a criança em questão. A surpresa foi saber que já eras nascida.
Abraço
Octávio