Saía eu da primeira
parte de uma sessão séria e internacional no Ministério das Finanças, que teve
a presença de um membro do Governo que não sabia o que dizia ou que dizia aquilo
que nós ainda não sabíamos, mas que ficámos a saber pouco depois, que não por
ele, para rumar até à Pombalina - não sem antes ter aspirado o odor de uma certa
pia no Martinho da Arcada para matar saudades de Pessoas que por ali passaram
-, café/tasca na esquina das ruas da Madalena e do Comércio, onde se comem as
melhores sandes de leitão da capital, e de onde, após satisfazer a gula, parti
a deambular do Município a S. Paulo - magnífico o trompe l’oeil do tecto da Igreja -, passando pela Rua Nova do
Carvalho, onde escorts de um turismo
íntimo esperam, não só pelos clientes que anseiam conhecer uma realidade mais
profunda dos lugares que visitam, mas também pela carteira profissional que as
meta em regra com o fisco (não as estou a ver com o terminal multibanco no
cinto de ligas), pela Praça da Ribeira em obras, pela Travessa do Cotovelo,
onde só o lixo se acotovelava, pelo Largo do Corpo Santo, onde bati a foto que
ilustra e foi pretexto deste texto tão fora do contexto, pelo Terreiro do Paço
onde, para além dos tão alfacinhas rickshaws
de aluguer, o que mais me chamou a atenção foi a nova especialidade lisboeta,
na senda do estrondoso êxito do pastel de nata de bacalhau, que é o pastel de
bacalhau que, quando se morde deita cá para fora um cremoso queijo da serra,
tudo anunciado em belos posters, no
limite do pornográfico, pespegados nos pilares pombalinos dos ex-Ministérios
transformados em locais de lazer e engorda. Vem-me de perguntar se nos não
ex-Ministérios não é a mesma coisa. Ao regressar às Finanças, desta vez pela
porta da Rua da Alfândega, dei comigo a apressar o passo na Rua dos
Bacalhoeiros para fugir da visão proporcionada pela fachada do estabelecimento
de mercearias finas “Silva & Feijó”, pensando estar perdido e em perigo no kasbah de Marrakech ou no souk do Cairo, e não em Lisboa, melhor
cidade europeia para estadias de curta duração segundo a World Travel Awards.
Mas todo este
preâmbulo para lembrar figuras desta Lisboa como o dormiente da foto, os párias da Liberdade, e refiro-me à Avenida, o
casal Florindo e Flora (nem inventado) que vai para 23 anos está à porta da
Procuradoria Geral da República reclamando justiça, sem que nenhum dos
Procuradores que por lá passou anos a procurar, e aos quais dedico também a
foto da imagem, ou justiça lhes faça ou os mande internar num manicómio, porque
uma coisa é certa: há ali um caso de loucura, a dois, ao sol e à chuva, se for
do lado de fora daquela porta, ou colectiva, no conforto dos silêncios secretos
do Palácio, se for do lado de dentro. E também a Liana. Mas para Vos falar da
Liana terei de explicar tudo. Para aqueles que conhecem a Marcella (com dois
LL) vai ser fácil perceber, mas para aqueles que não a conhecem terei de ser
muito sucinto para não encher três páginas. Vou tentar.
A Marcella Reis é
uma cidadã brasileira que vive em Portugal há já 15 anos, poeta e escritora com
uma formação de animação artística ministrada no Chapitô, que conheci numa
sessão de poesia na Livraria Barata, tendo o seu poema “Descendente do Mundo” me impressionado a ponto de lhe pedir para o dizer na Biblioteca José
Saramago, em Loures, quando da apresentação do meu segundo livro. Para isso
propus-lhe uma espécie de apanhados, ao que a Marcella imediatamente aderiu. E
assim aconteceu. Podia ter corrido muito mal devido à intervenção de alguns
presentes na sala que não perceberam a marosca, o que se pode considerar um
êxito na óptica dos apanhados, com a Marcella a ter de despachar a leitura do
seu poema a gritar para ser ouvida. Não sei se todos gostaram, para mim foi um
sucesso, para a Marcella uma loucura, tanto que estava feliz, tão feliz como
naquela noite em que eu disse umas palavras na apresentação do seu segundo
livro, no Hotel Real Palácio. Entendimentos entre “palhaços” que nem todos
entendem. Ora a Marcella, depois de tudo isto, mandou-me faz tempo um e-mail contando-me que uma Senhora de
nome Liana passava os seus dias sentada num degrau à porta do Centro Comercial
de Alvalade, sobrevivendo das poucas moedas que lhe deixavam cair no regaço e
da caridade de algumas Senhoras um pouco mais sortudas que ela, como era o caso
da Mãe da Marcella, a qual veio a saber da boca da Liana que, fruto da queixa
de alguns lojistas do Centro Comercial, a PSP a tinha intimado a deixar de
“estacionar” naqueles degraus, o que para ela representava uma ordem de despejo
da sua sobrevivência. No Largo, Santo António, na sua estátua, nada podia
fazer. Pedia-me então a Marcella no seu e-mail
que tinha em anexo uma foto da Liana sentada no seu degrau - mas ou o apaguei
ou não o encontro entre centenas de outras missivas electrónicas -, se eu me
importava de assinar um papel a pedir a revogação da sentença que iria
complicar a vida já de si complicada da Liana.
Em vez de
responder, peguei em carta e pena e escrevi um poema para a Liana, certo
que, apenso ao abaixo-assinado teria mais força e impacto que uma simples minha
assinatura. Transmiti-o então à Marcella que se desfez em agradecimentos
exagerados, passando-me um certificado falso de genialidade e de solidariedade,
o qual arquivei no file “Brasil” da
minha memória. Não constitui notícia o facto de, depois deste episódio, nunca
mais ter ouvido falar da Liana nem ter tido conhecimento do desfecho da sua
história, mas o que é para mim estranho é que a Marcella nunca mais se
comunicou comigo, embora eu lhe transmita sempre à quarta-feira a edição deste
meu blogue. Dizia alguém que falava bem que a vida é feita de encontros
falhados, e foi o que me aconteceu com a Marcella, mas, digo agora eu, que a
minha efémera ligação literária com a Liana foi um desencontro conseguido.
Mas eu que vivo de
livros e de sonhos, não poderia deixar passar o ensejo de Vos relatar um
quase/sonho que se entrelaçou com a leitura de um não/livro, em noite de insónia
mal dormida de Sábado para Domingo nas margens do Rio Seixe, fronteira entre o
Alentejo e o Algarve. Se considerarem relevante posso adiantar que a cama
estava do lado algarvio. O quase/sonho, e chamo-lhe assim porque foi daqueles
que, qual telenovela, continuava após sucessivos estados de alerta e parecendo
por isso muito longo, embora, como todos os sonhos que parecem não ter fim, nos
deixam na memória imagens vagas e fugidias que se esvaem ao despertar. E foi
para o fixar que peguei no não/livro e, enquanto o lia ou fingia lê-lo, ia
memorizando o essencial que é facilmente resumível, como segue: Entrei num café
com um longo balcão corrido, ficando o meu Irmão Vasco cá fora porque estava a
cavalo. Pedi um sumo de laranja natural, mas daquela laranjas sanguíneas
sicilianas, sumo que foi servido num copo alto que tinha três esferas de vidro
a servir de base, e pelas quais o sumo se escoava lentamente sobre o balcão à
medida que me iam enchendo o copo. Reclamei, e então meteram o copo dentro de
um saco da plástico transparente continuando a enchê-lo, ficando eu na mão com
um saco de plástico cheio de sumo vermelho com um copo roto lá dentro. Vim à
porta para mostrar ao Vasco a insólita cena, mas a rua estava vazia, nem Vasco
(a) nem cavalo, e voltei para dentro sem nada nas mãos já que o saco e o seu
conteúdo se tinham também evaporado, tendo acordado definitivamente sem
perceber nada, mas convicto que não iria incomodar Freud para uma explicação.
Acordado, peguei
nas 5 Cartas que Mário Cesariny escreveu a António Cândido Franco, de Poeta a
Poeta, entre Março de 1977 e Fevereiro de 2000, e mal comecei a ler, agradeci
de todo o coração a quem me proporcionou tal leitura, porque cada linha cada
tesouro, e juro que Vos hei-de transmitir parte deles em escritos sucessivos
porque, para além do interesse que os mesmos possam ter, sinto isso como uma
obrigação. Desta vez, e lembrando-me das inúmeras leituras que faço da obra de
Eduardo Lourenço “O Labirinto da Saudade - Psicanálise Mítica do Destino
Português”, deixo-vos aquilo que Aquilino Ribeiro e António Sérgio disseram de
D. Sebastião que, ai de nós, continua a ser o Desejado (Encoberto) que sairá do
nevoeiro para nos salvar. Dele (da nossa salvação), disse Aquilino no seu livro
“Príncipes de Portugal; suas grandezas e misérias”: «rebelde, impulsivo,
desaparafusado, louco dez vezes, infelicitado por uma terrível paranóia
congénita, impotente, incapaz de satisfazer ao débito conjugal, nevropata,
dementado, louco, zorato, imprudente, estupidamente sôfrego». Sérgio foi mais
comedido no primeiro volume dos seus “Ensaios”: «o vulto de um romântico pedaço
de asno – desse inexcedível pedaço de asno que foi o senhor rei D. Sebastião».
Boa vai a moenga, diriam aqueles que, na zona da minha insónia, dormiam o sono
dos justos, caso estivessem acordados e descobrissem quais os recônditos
desejos de um povo à espera da sua epifania, que lá tardar, tarda!
Liguei então as
laranjas sicilianas do meu sonho, à juventude também siciliana de D. Isabel de
Aragão, Avó do “pedaço de asno” e “maravilha fatal da nossa idade”, no seio de
uma família que tinha o Papa como o seu mais perigoso inimigo, e que veio a ser
canonizada por um seu sucessor três séculos depois e só após a Santa Inquisição
ter mandado suprimir todo um capítulo do seu, digamos, curriculum vitae, que dava conta “dos desacatos e irreverências da
rainha” fazendo “ de uma bruxa uma santa”, como escreveu Cesariny. Boa vai a
moenga se é desta extirpe que os portugueses esperam o resgate!
Depois de haver
lido este texto, parece-me ouvir a Manuela a lamentar-se pelo facto de eu nunca
lhe ter dedicado um poema como o que fiz para a desconhecida Liana; bato com a
porta sem sequer balbuciar uma desculpa, ouço-a ainda a recomendar-me para ter
cuidado a atravessar a rua, mas não tendo talento para lhe dedicar um poema do
tipo da Sagrada Família de António Gaudi, obra grandiosa e perenemente
inacabada, apetece-me ter o fim do genial arquitecto catalão, atropelado anonimamente
na sua Barcelona por um carro eléctrico, e dou comigo a atravessar sem olhar
uma das ruas de Lisboa onde já não passam eléctricos mas subsistem os carris. “Alentejano
num drome”, dizia o meu Amigo Francisco Maria Caramba, e os meus desejos estão
a anos luz da espera de D. Sebastião. Boa vai a moenga!
Um abraço.
Lisboa, 10 de Julho
de 2014
Octávio Santos
(a) "Estás em cada pormenor, em cada pensamento, fazes
parte de nós..... SEMPRE!!", como me escreveu a minha Sobrinha Rita Filipa
no dia em que fez dois meses que o seu querido Pai e meu querido Irmão nos deixou.
Caríssimo Autor, o Tema impressionante que escolheu para hoje fez-me pensar em todos os sem-abrigo que vi ao longo da minha vida. Em Lisboa nunca vi tantos como agora, coisa que não esperava que viesse a acontecer quando me encontrava num tempo antes de qualquer coisa que aconteceu (e para a qual também contribuí anonimamente c/algum medo na parte final). Hoje em dia vejo dois ou três sem-abrigo sempre que passo de manhã ou à tarde na Baixa de Algés. Ninguém aparentemente lhes diz para saírem e ali ficam algum tempo. Quando estive duas ou três semanas na Colômbia vi muitos sem-abrigo em Bogotá no final dos 80, mas só apareciam a certas horas. É impressionante se tentamos olhar nos seus olhos, eu tentei e não consegui e os que iam a meu lado disseram-me para não os encarar. Os sem-abrigo por quem passo na Baixa de Algés são reais e perguntei a alguém que me disse que eles o incomodam.
ResponderEliminarCaríssimo (a) Anónimo (a),
EliminarInfelizmente os sem abrigo em Lisboa já não fazem notícia por serem comuns, como os dos anos 80 em Bogotá, e em progressão geométrica, os quais, como os seus dois ou três de Algés, não estão em vias de extinção. A mim, devo confessar, que também me incomodam, embora os seus olhos de sem abrigo do corpo sejam exactamente iguais aos dos sem abrigo da alma que para aquela condição os empurraram.
Abraço
Octávio