Acabei a Parte Segunda a olhar embasbacado para o Elevador da Glória (sonhando com ela) que subia resfolegante calçada acima, arrependido de não ter corrido a apanhá-lo(a). Só que tinha prometido contar-vos toda a Avenida de fio a pavio e, como cumpro todas as promessas que faço, não vos podia deixar pendurados só porque me daria muito prazer subir até onde ele e o destino me levassem, mesmo que não fosse à glória.
Mas fiquei cá em
baixo e, como tudo começa pelo princípio, no nº 1 está o Palladium que tem no
seu ventre confuso um Snack Lounge, um Rent a Car e um Real Transfer, no 3, no
mesmo belo prédio cheio de consultórios médicos e de um Advogado, está a Sun Avenida
- Energias Renováveis de Portugal, Lda. e a OPTEC - Cinema e Som. No 5 de notar
apenas a Ginjinha Rubi e um recanto onde se vendem os Jogos da Santa Casa, no 7
a continuação da enorme confusão que reina dentro do Palladium e no 9, um
prédio moderno, feio, com ar de abandonado, a loja fechada, sobrevive mais um
recanto onde se vendem jornais e revistas e um Cartório Notarial num dos
andares. Depois, o nº 11, mais um edifício pombalino pobre e sem cor, que aloja
a Clínica de Diagnóstico Dr. Passos Ângelo, Lda., uma instituição privada
positiva no sistema de saúde deste país em saldos (como tudo na Avenida), um
balcão BES que promete ser Novo, a Médis e, na loja, a Foreva, calçado
português para consumo médio/baixo interno, com um vitrinismo atrasado de meio
século como muitas outras lojas na Avenida, havendo muito pior. No 15, um outro
pombalino, este menos pobre, cor de rosa, as lojas estão ocupadas por uma
Agência de Viagens El Corte Inglès e pelo Hippie Café - Convenient Store, que
tem à entrada um pirata tamanho natural em papier
maché, que de tão decadente e escalavrado não convida a entrar ou será que
é mesmo disto que o turista gosta, levando consigo, deste país de piratas,
junto com uma banana e uma cerveja, um very
tipical souvenir? Recuso-me a acreditar e penso mesmo que um qualquer
gabinete da CML se deveria ocupar destas indecências, impedindo-as. Podem dizer
que não se pode, que vivemos em democracia, mas num país em que se fez uma lei
que me proíbe de colaborar, mesmo pro
bono, com qualquer entidade ou organismo público sob pena de perder o
direito à reforma, lei que o Dr. Bagão Félix classificou de aparentada à
eutanásia, não pode uma autarquia legislar contra a poluição visiva da cidade?
No 15/19, outro pombalino, este de azulejos castanhos e em reabilitação; em
baixo o Calçado Guimarães (aberto 24 horas), idêntico à Foreva mas bastante
pior, saldando saldos, e a loja fechada e suja que foi da Halcon Viagens. O
seguinte é idêntico, exteriormente bem conservado nos andares visíveis já
remodelados pelas BBON e CASAIS para ser o futuro Hotel Bessa que já anuncia
contratar pessoal de hotelaria. Menos mal. Um jovem dirige-se a mim de mão
estendida “excuse me, I’m hungry,
please”, respondo-lhe sem o olhar enquanto finjo que escrevo no caderninho,
“I’m working in this moment, sorry” e
sigo caminho apressado, ocupado e nada “hungry”
porque já tinha o pequeno-almoço no bucho.
No nº 49, na
esquina com a Travessa da Glória, um moderno edifício verde linear e sem alma,
todo Visionlab em baixo - os portugueses, para além das outras doenças todas,
são agora também míopes, presbitas, astigmáticos ou amblíopes -, em cima a
Svenson – Hair Specialist, a Embaixada de Malta, a Willis, corrector de
seguros, a Main Side Investement, SGPS, SA, a Masterjet - the way it should always be -, e a AMP/ADD, Management Partners.
Digamos New York ou a City londrina. No 59, do outro lado da esquina, num
pombalino pequeno mas interessante, com grandes mansardas, a Baiana, Pastelaria
Leitaria, no 65 curioso edifício amarelo gema de ovo, antigo, pouco português,
restaurado, que afixa uma lápide indicando que ali nasceu o pintor Carlos
Botelho em 1899, lápide (quase pedra tumular) que ostenta o seu retrato e a
data da morte, 1982. No 67 está aquela que eu chamo a loja dos horrores que
vende, para além da mítica marca de calçado Doc Martens que tanto agradou (e
continua a agradar) a sucessivas gerações de punks, góticos e afins, incluindo motards, tudo aquilo que faz parte do enxoval próprio de jovens e
menos jovens que escolheram esta via de expressão cultural que se revela no
próprio corpo e seus atavios. As montras atraem a vista do passante pela
profusão e confusão de artigos expostos, anéis, amuletos, brincos, pins, porta-chaves,
cinzeiros, pulseiras e penduricalhos vários, mas também outras coisas que
representam um mundo subterrâneo - se eu fosse padre diria satânico ou das
trevas - privilegiando a morte e todas as formas de representação do
além-túmulo; a peça que mais me chamou a
atenção foi a estatueta de um esqueleto cantor feminino com soutien, xaile e microfone, uma
horrorosa “beleza” fadista kitsch. Entrei para rever o móvel que
está à entrada da porta à sua direita e ocupa toda a parede; pena que esteja
cheio de “lixo” porque é talvez uma das preciosidades escondidas desta Avenida.
Trata-se de um enorme móvel/biblioteca completamente entalhado de alto a baixo,
magnificamente esculpido e que, no meu entender, tem hoje um valor superior a
todo o edifício que o acolhe. Lembro-me de o ter descoberto no fim dos anos 50
e de ter falado sobre ele com o proprietário da loja, que então vendia
acessórios para automóveis (há lá ainda restos de espelhos retrovisores e
maçanetas de mudanças), tipo “bolantes de pau e conta boltinhas para emeguebês
guetês”, tendo-me ele afirmado que alguém já lhe tinha oferecido mil contos mas
que não o vendia por dinheiro nenhum. Quem salva esta preciosidade? Eu, se
fosse o actual inquilino, transformava o local em curiosidade turística, como
se fosse um museu vivo com uma peça única - O Único Museu do Mundo com uma Só
Peça! -, bastava uma limpeza, um cicerone que soubesse tudo dizer sobre o
objecto exposto e a arte da talha em Portugal, umas mesas, umas cadeiras e poucos mas bons vinhos exclusivamente
portugueses, para animar os visitantes e
promover o que temos de bom; era negócio, mas eu continuo a ser um
“empreendedorista” sem cheta (xeta é, no Brasil, um beijo mandado de longe).
Abençoado dicionário!
No 67-B está um
outro curioso edifício, como o 65, este já mais português, muito bem restaurado
e pintado de vermelho escuro, com escritórios para alugar e um Notário já
instalado; na esquina com a Rua da Conceição da Glória abriu agora a COS, loja
de trapos a preços abordáveis mas com arranjo interior e vitrinismo dignos daquelas
que vendem coisas muito mais caras; trata-se da linha mais alta da sueca
H&M.
Na outra esquina o
Edifício Espaço Liberdade no nº 69, outro moderno e linear à Siza, com a loja
ocupada pela David Rosas que ostenta nas suas luxuosas montras aquilo que há de
mais tentador em ourivesaria, joalharia e relojoaria, incluindo os prestigiosos
relógios da Officine Panerai, que mais não são que a redescoberta recente
(estava eu em Roma) dos relógios Luminor usados pela tripulação dos submarinos
italianos. É como se alguém transformasse tractores agrícolas em automóveis de
prestígio e a moda pegasse: - Comprei um John Deere turbo intercooler, hibrid plug in, que é um espanto! – Se visses o meu
New Holland Suv 4x4, diferencial autoblocante e caixa sequencial no volante,
calavas a boca e até te passavas! No 75, um pombalino
decadente e vazio nos andares, excepto talvez de consultórios e da Dimofel no
1º andar. Em baixo a Via Liberdade – Sport and Classic Cars, que não passa de um
Rent a Car e a Cervejaria e Restaurante Quebra Mar. No 85, na esquina da Praça
da Alegria (quando a sede da FPF era aqui ainda havia um grupo de rapazes a
correr na relva sem agentes que nos dava algumas alegrias), aí sim está a
Dimofel – Electrónicos, Lda., onde ninguém subia por aquelas escadas sem
encontrar o que queria e, muitas vezes, acabando por comprar aquilo que nem
sabia existisse, mais médicos, o LX Corner Hostel, um balcão da CGD e a
Pastelaria Lusitânia. No 101/103, um belo pombalino azul água, onde está a
Ideal Tower, a Pronoivos - quem continua a casar?-, e a Gilles, Fine Jewellery
com as montras cheias de relógios Franck Müller, de Geneve, Master of
Complication.
No 105, ao olhar
para cima para ver quem lá está instalado, deparo com todas as varandas do
segundo andar esquerdo floridas (imagem do texto) e, curioso, vejo que
pertencem à Central Models, Agência de Modelos (25 anos a criar e a realizar
sonhos), que é a agência da Sara Sampaio e também minha, modestamente. Subo e
falo com o António Romano que tem a gentileza de me expor longamente e com
paixão o seu projecto Eva Dream, já objecto de um seu livro, o qual
consiste “só” em transformar Portugal num país florido, e das suas varandas
que, como ele diz, não estão viradas para a Avenida da Liberdade, mas
simplesmente para a Liberdade. Tenho a certeza que o António vai levar para a
frente o projecto do seu sonho, muito facilitado por ter a Emília a seu lado.
Esquecia, e é importante, que no 105 está também uma Sociedade de Advogados,
obviamente sem flores, uma Foreva menos confusa e a Pastelaria Pomarense. No
passeio, uma Senhora, entre os 30 e os 40, chora enquanto fala ao telemóvel e
ouço-a dizer, entre soluços, ao seu interlocutor: - Mas o que é que tu queres
que eu faça se ele exige que seja eu a entregar a carta de demissão? Diz que é
melhor para mim! Vidas de hoje, e menos mal que não estamos na faixa de Gaza,
digo eu que vejo sempre tudo pelo lado positivo.
No 111 está a Mont
Blanc da invejada estrela branca, quase tão difícil de alcançar como o cume do
homónimo alvo monte alpino, só acessível aos João Garcias da freenança com todo o equipamento em
ordem e sólidos apoios nos campo base. Em 2005, em Xangai, uma colega comprou
dez canetas “garantidamente originais” por 60 euros. No 127 o moderno e bonito
edifício do 5 estrelas Sofitel que atrai o apetite dos passantes com os
sugestivos petiscos do cardápio do Restaurante adLib. Ao lado a Dara Jewels. No
129, um prédio novo de linhas direitas forrado de pedra, tem em baixo o Avenue
Restaurant Bar Enoteca e a Boutique dos Relógios Plus. Do 131 ao 151 mais um
belo e imponente exemplar pombalino, bem restaurado, cor de rosa; nos andares a
Eaglestone, a Cushman & Wakefield, a AIG e, graças a Deus, mais uma
Sociedade de Advogados que, pelo nome dos patronos, é ibérica. Em baixo as impecáveis
lojas da Hugo Boss (casa fundada em 1923 e fornecedora exclusiva dos uniformes
nazis) e da Ermenegildo Zegna. Ao
passar, veio-me à memória que naquele edifício, a cavalo entre os anos 50 e 60,
existia um pequeno bar, tão pequeno que o balcão estava quase encostado à porta
de entrada, cujo proprietário designava as bebidas que servia, bem como tudo
aquilo de bom que lhes acrescentava, com o asneiredo mais soez que a sua
inventiva empresarial lhe oferecia. Lembro-me que passava por lá com colegas da
minha idade, exclusivamente machos, para nos acanalharmos com a linguagem
corrente daquele local que hoje seria considerado cult. A bebida interessava pouco, até porque devia
estar no limite do potável, mas o facto de entrar, pedir a mistela e ouvir
nomear os acessórios a escolher, tudo em vernáculo, era o máximo da
transgressão para putos de 16/18 anos. Há quem me ache atrevido na escrita e
de, por vezes, derrapar para fora das linhas do aceitável mas, neste espaço
dignificado pela imagem da Suggia, pela douta citação latina e pelo bom gosto e
elegância de quem o idealizou, não me passa pela ante-câmara do cérebro repetir,
escrevendo-a, uma só palavra das que disse e ouvi naquela que era uma “capela”
iniciática da asneira livre, lembrando-me que “ a escrita fica quando um dia a
palavra se retirar”. Será que sou o único velho que se lembra da existência
deste local? Espero ansiosamente comentários pertinentes.
Estamos na esquina
da Travessa do Salitre e, olhando para a esquerda, vejo a entrada do Parque
Mayer com as suas torres, entre Manhattan e San Gimignano, mas fica para uma
próxima ocasião, até porque não é lícito violar um “santuário” quando se anda a
fazer turismo de mochila às costas.
Abraço.
Lisboa, 14 de Agosto
de 2014
Octávio Santos
Caro Ostinato, é muito interessante ler o seu texto que, como os anteriores sobre a Avenida, nos mostra os pormenores conhecidos por uns e outros e nalguns casos por quase todos. Desperta-me enorme curiosidade certos detalhes, por exemplo quando refere marcas conhecidas de sapatos ou outras, sentido ironicamente que estou calçada c/certos sapatos que pensava de marca menos má, mas afinal parece que não é. Todavia, em vez de ficar um tanto mal disposta de ter sapatos dessa marca (e eu gosto de marcas) ou de considerar excessivo dizer mal da marca, fico a sentir-me bem informada, porque o contexto do post é todo ele histórico e actual. Como o texto é longo, por enquanto só li até ao "empreendedorista sem cheta" e achei que afinal conheço muitos outros portugueses (e também chineses) que se consideram empreendedores, pequenos claro, alguns que vivem mesmo na minha rua. Vou continuar e ler e comentar o post deste interessante blog (DFC).
ResponderEliminarCara Deolinda,
EliminarObrigado por me continuares a ler e, sobretudo, a comentar. Vamos lá aos sapatos. Eu não quis desvalorizar os sapatos nacionais da Foreva ou da Guimarães, só que estamos já entradotes no século XXI e que uma montra numa Avenida que se quer chic não é propriamente aquilo. Não é porque a mercadoria é barata, e bem vinda seja, que não se pode apresentar bem. Veja-se o exemplo da COS que apresenta trapos a preços abordáveis em vitrinismo de luxo. São suecos, não portugueses. As outras duas marcas portuguesas co loja própria na Avenida, a Fly London e a Luís Onofre, são outra coisa, independentemente dos meus gostos pessoais. Não aprecio os Fly London mas, quando vou buscar os meus netos ao Charles Lepierre vejo as mamans francesas com eles nos pés. Os do Luis Onofre não são sapatos, mas obras de arte que dignificam qualquer criador e fabricante e levantam o nome do seu país de origem. Só mais uma coisa sobre sapatos. O que te parece mais inteligente em termos de marketing: Aerosoles (penso num spray para a asma), ou Tod’s com todo o background que estimula o impulso de comprar?
Abraço
Octávio
Hoje continuei a ler até ao fim, caro Ostinato, e só tenho a acrescentar que gostei da descrição dos edifícios históricos que estão actualmente cheios de marcas, advogados, etc. Fixei-me na Mont Blanc, as célebres, que estão ainda guardadas no fundo de muitas gavetas (dentro de estojos) e outras já estão em lojas de antiguidades ou de colecionadores. Gostaria de ver comentários dos donos ou representantes dessas marcas, uma vez que toda a descrição as eleva, de certo modo, às nuvens da popularidade selectiva, coisa que existe mesmo.
ResponderEliminarCara Deolinda,
EliminarVejo que persistes em continuar a ler-me e que és apreciadora de belos objectos, como são todos aqueles marcados com a estrelinha branca dos nossos desejos. Quanto aos comentários dos donos ou representantes das marcas, não te farei a vontade, primeiro porque não sou jornalista, e segundo porque os mesmos seriam inúteis por serem de parte e, portanto, falsos. Vê e ouve os comentários dos políticos, banqueiros e responsáveis de clubes de futebol: de parte e, portanto, falsos.
Abraço
Octávio