Sento-me para
escrever e, como da última vez tive o atrevimento de me meter no teatro,
sinto-me como um comediante que, ao subir o pano, tem o terror de não recordar
a sua parte, ou durante a récita esquece se deve sair pelo lado da praça ou
aquele da rua, com medo de não ter nada para dizer, ou de não o fazer de maneira
que valha a pena roubar tempo aos leitores. Desta vez veio em minha salvação um
amável convite de caros amigos para visitar a Herdade das Servas, com um
programa extra de fim-de-semana em Vila Viçosa, durante as Festas dos Capuchos,
que será o motivo da próxima crónica. E é isso que vos vou contar, fazendo um
esforço suplementar para vos dar notícia da parte negativa, como sempre faço,
embora desta vez não me seja fácil o exercício, por escassez de matéria.
Quando atravessei o
portão de entrada da Herdade tive, pela disposição e arranjo das vinhas, a
sensação de estar na região de Bordéus, em Saint Émilion, no Médoc ou
Entre-Deux-Mers, tendo descoberto depois sem surpresa que, da equipa de
técnicos responsáveis por esta “máquina” de produzir bons vinhos, faz parte um
Professor da Universidade de Bordéus. Já, junto ao edifício principal, as
enormes talhas do século XVII alinhadas, quais soldados chineses de terracota,
na defesa da herdade e do que lá se produz, me levaram à Sicília, recordando
Pirandello, um dos seis Prémios Nobel italianos de Literatura, que escreveu a
maravilhosa novela “La Giara” (A
Talha), que mais não é que uma fábula sobre o poder, os seus jogos e a sua
fragilidade, novela que foi incluída no filme em episódios “Kaos” dos irmãos Taviani. Para quem tiver paciência de perder - eu
diria de ganhar - 40 e p0ucos minutos, aqui fica o link para visionarem o que acontece à tão ansiosamente esperada
talha nova de Don Lollò Zirafa, esta para azeite, que não para vinho:
Apraz-me lembrar
aqui que o meu ex-colega e amigo (não ex) Miguel Malheiro Garcia, que de vinhos
entende, recomendava aos seus colegas, nabos na matéria, para em qualquer
situação de dúvida na escolha de um bom vinho, para terem a certeza de fazer
boa figura, deveriam pedir, como se entendidos fossem, um Herdade das Servas. Como
o compreendi melhor agora!
Quanto à descida à
adega durante a visita guiada que nos foi patrocinada, juntamente com um casal
americano e um seu amigo português, terei de pedir desculpa à jovem Senhora que
gentilmente nos serviu de guia, mas eu não estive lá, ou seja, estive mas não estive.
Eu explico. Já na sala, adjacente ao restaurante, onde fomos recebidos, a minha
atenção foi atraída por uma velha bomba manual de trasfega que me transportou à
adega dos meus Avós maternos, aos seus cheiros e ruídos (o click-clack da prensa, meu Deus!), e a tudo o que fiz, na adega e
fora dela, há mais de 50 anos, nas faldas da Serra de Montejunto. Quer dizer,
eu vi as cubas de inox a brilharem, a maquinaria a fazer tudo aquilo que então se
fazia à mão, a nova tecnologia ao serviço de uma muito mais alta qualidade,
adivinhando até o que se passava no laboratório, tendo apreciado e muito, que
não sou burro!
Mas vi-me menino a
assistir à cava das vinhas, à semeadura do tremoço entre as alas das cepas, à
poda e à empa, ao juntar e atar os molhos de vides a pôr ao seco para cozerem
semanalmente o pão no forno da casa, aos trabalhos da enxofra e da sulfatagem,
duas ou três vezes repetidos - que o fantasma da filoxera ainda estava na
memória dos homens -, que arruinariam até os pulmões do Tarzan, o enterrar do
tremoço já crescido para azotar as leivas, junto ao adubo e ao amónio usados parcimoniosamente,
as contrariedades por um não pouco frequente desavinho, o rezar para que
chovesse agora, mas pouco, e para que não chovesse e o Sol picasse depois, mas
sem exagero, o lavar da adega e de todos os seus pertences quando pelo pintar
dos cachos se percebia que a vindima se avizinhava; nos cascos mais pequenos
cujo postigo não permitia a entrada de um homem, lá ia o rapazeco em cuecas,
munido de escova, água e óleo de cotovelo, numa tarefa tão repetida que já não
sabia distinguir a água do próprio suor. Depois a chegada do tanoeiro que vinha
ajeitar arcos e aduelas a pipas, tonéis, barricas, cascos, celhas, dornas e
cestos de pau, o ensebar dos mecanismos da prensa e da bomba, a queima das
tiras de estopa enxofradas, para acabar com bactérias e fungos nas vasilhas que
repousavam nos seus dormentes sobre os canteiros. E vinha então a vindima, a
chegada dos malteses que eram aquartelados no palheiro durante as duas ou três
semanas da sua duração, os cestos de vime, as tesouras, o corte segurando bem o
cacho com a outra mão, o carregar a tina na carroça da mula ou nos cestos de
pau pendentes da cada lado dos burros alugados, como homens à jorna, nas
fazendas onde a carroça não chegava, o descarregar as uvas para o lagar, a pisa
com as calças arregaçadas acima do joelho, o mosto a escorrer para a pia, a
trasfega para os tonéis se era branco e para as balsas se era tinto, levando em
cima com as peles e engaços que lhe dariam cor e taninos, o armar o pé à volta
do fuso da prensa, o passar a corda bem apertada à sua volta, o colocar as
meias luas de madeira em cima e apertar a prensa até os braços doerem e os click-clacks se tornarem mais espaçados
e os respiros mais fundos.
Desfazer o pé a
machado e voltar a fazê-lo, que o último, regado, já só dava água-pé. No fundo
da pia não podia ficar réstia de mosto e era outra vez o rapazeco que entrava
descalço e, com um esfarro, recolhia as últimas gotas. Acontecia por vezes que o
trabalho se prolongasse pela noite dentro à luz dos Petromax da casa Hipólito
de Torres Vedras, e depois do banho com mangueira, o colchão de capelos de
milho era a antecâmara do paraíso.
Lembro-me de na
Adega das Servas ter explicado à Carlota o que era e para que servia o pesa
mosto que alguém estava a usar, e de lhe ter dito que, como as uvas tintas são
brancas por dentro produziriam vinho branco se não passassem algum tempo nas
balsas em contacto com as suas peles para receberem delas a cor. Da minha Bíblia
não escrita passei-lhe duas noções, esperando que se venha a lembrar.
Esqueceu-me de lhe dizer que as peles das uvas, depois de secas na eira ou no
terraço, em cima de panais de serapilheira, se chamavam de folhelho e serviam,
misturados com outros restos de uma casa de lavoura, de ração para porcos,
mulas e até coelhos, porque, naquele tempo, não se deitava nada fora. Mas já
seria uma outra história. E eu que não estive lá durante a visita, e disso já
pedi desculpa à nossa amável guia, só me recordo de ela ter dito uma coisa aos
americanos, que eu não teria dito se estivesse no seu lugar: que os batoques
que fechavam as barricas de carvalho francês e americano onde os néctares
repousavam, melhorando e envelhecendo, eram de silicone, porque os de cortiça,
para além de durarem menos, lhes poderiam passar algum sabor não conveniente.
Ignorância minha ou, mesmo sendo verdade, temos todos a obrigação de defender
aquilo que um meu amigo alentejano chamava “as nossas barras de ouro cortadas a
machado”?
Mas vamos para a
mesa, a “boa mesa”, que para isso também viemos. A sala do recém aberto
restaurante é acolhedora, sóbria e elegante sem ser intimidatória. O serviço,
cortês, silencioso qb e eficiente. Das entradas, e eram tantas e deliciosas,
ficaram na memória as pataniscas de farinheira, que alguém nos disse, quase em
segredo, chamarem-se no Alentejo “papa ratos”, os cogumelos salteados, os
variados enchidos e queijos, os ovos mexidos também com massa de farinheira, cremosos
como se deve, sem esquecer o principal que para mim é o pão, e desta vez, o bom
pão alentejano que, se não mo tirarem da frente, desaparece num abrir e fechar
de olhos. Restaurante que não tenha bom pão e toilettes a brilhar, pode ter a melhor comida do mundo e
resplandecer de estrelas de pneus, mas não volto lá.
Depois o cação de
coentrada, cozinhado no ponto justo, o pão frito, aquele molhinho… Divino,
diria o nosso escritor diplomata se descesse de Tormes a Estremoz, farto das
favas do Jacinto. Seguiu-se o entrecosto com migas, aquele macio, estas com a
justa consistência e tempero, que, como todo o resto, honrou quem estava na
cozinha, e sabemos bem qual cozinha de milagres (São rosas… diria a Rainha Santa)
teve como escola. Dos vinhos, escolhidos sabiamente para cada prato, já foi
dito quase tudo, mas mais uma nota devo deixar: não tenho o hábito de beber
tanto, e quando o faço geralmente arrependo-me pelas consequências, e não estou
a pensar na GNR. Neste caso juntei o prazer do palato e da goela ao bem-estar
que de mim se apoderou o resto do dia. Falta só a sobremesa, e confesso que
quando vi as seis ou sete porções de doces no meu prato, todos amarelinhos e
tentadores, eu que sou maldizente, dei comigo a interrogar-me: vou agora comer
tudo isto que, para mais, é feito com uma coisa que sai da cloaca das galinhas?
Provei o primeiro, deve ter sido encharcada, depois o toucinho-do-céu e, para
me convencer a continuar, lembrei-me que os ovos têm casca e que os meus
receios eram infundados, e só não lambi o prato por decoro. Muito obrigado e bem
haja, Sr. Paulo Baía!
Se tivesse que
resumir tudo numa só palavra diria “Voltar”, desta vez sem a mania de velho
defensor da cortiça, e vamos agora mudar de concelho que outras aventuras nos
esperam nas Festas dos Capuchos, em Vila Viçosa. Mas como disse acima, fica
para a semana.
Abraço.
Lisboa, 25 de
Setembro de 2014
Octávio Santos
Brilhante!
ResponderEliminarLa bocca in Lupo!
Caro (a) Anónimo (a),
EliminarMuito obrigado pelo brilhante, mas chega o Eurico! Copiando a RTP1 com a pílula matinal do "bom português", vamos lá ao "bom italiano": In bocca al lupo, a que eu respondo com Crepi il lupo!
Abraço
Octávio
Prezado,
ResponderEliminarUma pessoa até se sente pequena com tanto cnôu-au! Realmente o que tu já aprendeste nesta vida! Obrigada por nos passares (de ti) tanta coisa interessante, na certeza de que se continuares teremos mais alguns bons momentos como este. Até Vila Viçosa, então!
Cara Azinheira,
EliminarPodes dizer que te sentes pequena porque tens mais um palmo que eu, mas não é caridoso da tua parte. Gostei do neologismo alusitanado, que não me vai, a mim que não distingo uma azinheira de um chaparro. Aprendi nestes últimos 70 anos algumas coisas como toda a gente; tenho só a vantagem de não as ter ainda esquecido, debitando-as agora em catadupa com receio de amanhã já não ser capaz. De Vila Viçosa não esperes muito, ou seja, de Vila Viçosa não esperes muito de mim, já que me limitei a umas dicas turísticas em tempo de festa, e a um devido agradecimento a Amélias que me acompanharam em terras da homónima Rainha.
Abraço
Octávio