Prólogo
Quando os meus
Filhos eram crianças havia lá em casa um livro intitulado “Os mais belos contos
de fadas”, o qual sobreviveu até hoje em muito mau estado de tanto que foi lido
nesses anos. Para os Netos só teve serventia nos seus primeiríssimos anos de
existência, visto que se tornaram depois e rapidamente, como todos os da
geração I POD, seres tecnológicos que não usam meios antiquados e anacrónicos de
aprendizagem ou de lazer. Liam-se também as Fábulas de La Fontaine, e aquilo
que nelas sempre me fez confusão foi a existência de um só exemplar da mesma
espécie, uma formiga, uma cigarra, um lobo, uma raposa, um corvo, uma cegonha,
um sapo, etc.. Tendo experimentado uma pequena peça de teatro - sem qualquer
êxito, diga-se - no meu texto de 18/9, e após uma frutuosa digressão pelo Alentejo,
lembrei-me agora de escrever uma, também pequena, fábula animalista, esperando
que Monsieur Jean de La Fontaine me releve o plágio, a inevitável adaptação de
tiques das suas personagens de então a TIC’s próprios dos dias de hoje,
destinando-se ela a crianças ciberneticamente evoluídas e, sobretudo, a multiplicação
de uma das espécies, já que as cigarras desta fábula são para cima de 10
milhões.
Fábula (a)
No Estado de Citius (b), antes conhecido como “Costa das Negociatas” e ultimamente
como “República da Impunidade”, viviam a Tecno-Formiguinha, o Coelhinho de
Massa Ruim, o Rei dos Macakong’s e cerca de 10 milhões de Cigarras Mandrionas.
É sabido que foi devido à mandriice das Cigarras Mandrionas, que levavam a vida
a cantar ao Sol das Bahamas ou das Cayman em tempo de férias, esperando depois
que a caridade natural daqueles que lá tinham os seus cabedais arrecadados,
arduamente suados na constante porfia de promover o bem estar no Estado de Citius, as fossem sustentando, e às suas
proles, o que foi sucedendo ao longo dos tempos, tendo por isso, apesar dos
imanes esforços dos poucos que trabalhavam para o bem comum, tornado a situação
insustentável. E veio inevitavelmente a crise!
Notório é para
todos que as formiguinhas, ao contrário das cigarras, não passam a vida a
cantar ao Sol, mas a trabalhar afincadamente para poderem sustentar a
comunidade onde estão inseridas, e a nossa Tecno-Formiguinha, não sendo
excepção, começou a inquietar-se, chegada a crise, com a escassez de trabalhos,
cuja falta a impediria de continuar o seu apostolado de caridade em benefício
da grande massa das Cigarras Mandrionas. O que fazer então para salvar o
equilíbrio do Estado de Citius?
Lembrou-se, na aflição,
de ter ouvido falar de um coelhinho que tinha fama de muito diligente, tendo
começado a trabalhar desde a mais tenra juventude, e sendo até considerado o
primeiro entre os jovens da sua espécie, pelos resultados que obtinha. Como
todos sabem, não basta trabalhar no duro para se ter sucesso; é indispensável
ser-se empreendedor, inovador, competitivo, determinado e nunca titubear, senão
pode “ir tudo por água abaixo”, e o nosso coelhinho, que tinha todas essas
qualidades, revelou-se tão implacável e intratável para com as criaturas que o
frequentavam, mesmo as mais doces, que o alcunharam de Coelhinho de Massa Ruim,
por considerarem que quem o tinha feito teria, embora angelicamente, usado uma massa má. Como se Deus,
em vez de ter feito a Eva com uma costela do Adão, tivesse, ao ver acabar o
material, ido a um barreiro de qualidade inferior buscar argila de segunda para
fazer a primeira Mulher. Felizmente assim não aconteceu e a paridade dos
géneros é uma realidade baseada na igualdade original, embora me surjam certas
perplexidades quando me ponho a idealizar que a Madre Teresa de Calcutá possa
ter sido feita de uma costela do Eng.º Ângelo Correia, a Patrícia Mamona de uma
do Dr. Marques Mendes, a Lili Caneças de uma do Dr. Vasco Rato, não me
repugnando que a Santinha da Ladeira tenha saído de uma do Miguel Relvas, mas
lá estou eu a divagar e a distrair-vos da trama da fábula, citando pessoas que
nada têm a ver com ela, a começar pela Eva.
Ora o Coelhinho de
Massa Ruim, para além de todas as prendas acima reconhecidas, tinha ainda uma
qualidade muito importante. Tal como certos macacos japoneses que lavam no rio
os seus alimentos antes de os levarem à boca, como as lontras que, boiando de
costas, põem uma pedra em cima da barriga e com outra partem os bivalves e
caramujos para os poderem comer, ou como os corvos da Nova Caledónia que
constroem anzóis na ponta dos gravetos com que extraem vermes dos buracos das
árvores, o Coelhinho de Massa Ruim idealizou, construiu e sabia utilizar gazuas
que abriam todas as portas. Assim, a Tecno-Formiguinha foi ter com o Coelhinho
de Massa Ruim e contou-lhe todas as suas actividades e êxitos pregressos, bem
como as actuais dificuldades, solicitando a sua intervenção para que as coisas voltassem
à normalidade, bastando para tal que lhe fossem atribuídos uns trabalhinhos,
desde que remunerativos, para poder continuar a sua meritória obra de acção
social junto da comunidade das Cigarras Mandrionas, garantindo assim o decorrer
de uma vida sã, normal, risonha e esperançosa no Estado de Citius.
O Coelhinho de
Massa Ruim ouviu com toda a sua atenção a exposição da difícil situação narrada
pela Tecno-Formiguinha, mostrou a maior compreensão pelas dificuldades das
partes interessadas, percebeu que a solução dos problemas da Tecno-Formiguinha
poderia vir ao encontro dos seus próprios, deu-lhe a entender que essas coisas
requeriam tempo para encontrar, sem precipitações, os justos parceiros, e
sobretudo meios de uma certa espessura e consistência para que pudesse ser
encarada uma forma eficaz de ajuda, falando-lhe ainda da indispensabilidade de
coesão entre as partes a envolver, dando-lhe como exemplo o pacto que mantém em
pé a Liga dos Amigos de Boliqueime, que aquele foi para vida e para a morte. A
Tecno-Formiguinha compreendeu tudo, o dito e o não dito, pediu ainda ao
Coelhinho de Massa Ruim o favor de lhe fornecer alguns números que permitissem
movimentar os tais meios necessários para levar a bom porto o favor solicitado,
e retirou-se com a certeza de ter ido bater à toca justa.
Pondo-se o
Coelhinho de Massa Ruim a magicar sobre qual a porta mais útil a abrir para a
efectivação do seu desiderato, lembrou-se do Rei dos Macakong’s, o qual, após
uma aventura com a Jessica Lange em Manhattan, no alto das Torres Gémeas (que pela primeira vez sentiram aviões ameaçadores à sua volta), em que
viu a sua raça em sérios riscos de extinção, dada a violenta operação que a
polícia de Nova Iorque desencadeou contra ele, só culpado de um amor impossível,
deixando-o sem capacidade de propagação da espécie, renasceu das cinzas pela
mão de beneméritas organizações mundiais que investiram avultadas verbas na sua
reprodução in-vitro, encontrando-se
hoje o Rei dos Macakong’s a reinar sobre uns bons milhares de clones seus espalhados pelo mundo dito desenvolvido.
A sua alta função é aquela de evitar que outros grupos de primatas menos
peludos que habitam em partes do mundo menos desenvolvidas, não corram o mesmo
risco de extinção da raça do Rei dos Macakong’s, mas ao mesmo tempo evitar que,
com a sua acção, o seu habitat se
torne desenvolvido, porque tal poderia ser nocivo ao equilíbrio de todo o
planeta. Assim, o Rei dos Macakong’s, que conta com grandes apoios, incluindo
na capital do plat pays de Jacques Brel, passou a receber das citadas beneméritas organizações mundiais,
ingentes verbas que distribui pelos seus súbditos, os quais têm o poder de os redistribuir
a seu bel-prazer desde que respeitem as premissas estabelecidas, extremamente
simples e compreensíveis:
- Que todos os Macakong’s vivam na opulência;
- Idem, para os
seus eleitos na distribuição das tarefas e verbas inerentes;
- Que os primatas “beneficiados” não se extingam;
- Que os territórios por estes habitados não ultrapassem o
actual estado de
desenvolvimento.
E foi a porta do
Rei dos Macakong’s que o Coelhinho da Massa Ruim foi abrir com a sua gazua,
para lhe pedir ajuda para a Tecno-Formiguinha. O Rei dos Macakong’s que, ao
contrário das outras personagens das fábulas, não fala, emitindo apenas um
gutural “- ONG!”, de onde deriva a sua designação, recebeu o Coelhinho de Massa
Ruim visivelmente mal humorado pelo facto de não apreciar que ele entre em sua
casa sem necessitar de bater à porta, mas, sentado no seu trono, ouviu o que
ele lhe tinha a propor. Durante a perora do Coelhinho de Massa Ruim, o
semblante do Rei dos Macak0ng’s foi perdendo a hostilidade inicial e,
rapidamente passou da indiferença à atenção e desta ao primeiro sorriso. No fim
proferiu um sonoro “-ONG!”
que o tradutor de serviço disse ser um SIM!. Iniciou então um diálogo entre o
Coelhinho de Massa Ruim e o Rei dos Macakong’s:
- Quando?
- ONG! ONG! (Imediatamente)
- Quanto?
- ONG! ONG! ONG! (O necessário para a operação)
- Mas olha que é muito!
- ONG! ONG! ONG! ONG! (Não me assustas; já estou habituado)
- Como se faz a divisão?
- ONG! ONG! ONG! ONG!
ONG! (Um terço para a
Tecno-Formiguinha, um terço para ti e um terço que retenho para mim na fonte).
- Muito obrigado. Posso então avançar com a operação?
- ONG! ONG! ONG! ONG!
ONG! ONG! (Sim, desde que sejam
respeitadas as regras que as beneméritas organizações mundiais impõem)
- Podes estar tranquilo, rematou o Coelhinho de Massa Ruim,
que saiu feliz a levar a novidade à Tecno-Formiguinha.
E viveram todos
felizes e contentes, com excepção das mal agradecidas Cigarras Mandrionas e dos
primatas a “beneficiar”, que ainda não compreenderam todo o bem que lhes fazem.
Epílogo
Recebi um convite
de uma conhecida editora para incluir esta fábula num volume a editar
brevemente, intitulado “Os mais belos contos de fadas”. Já lhes mandei um e-mail a adverti-los que esse título já existe, permitindo-me
sugerir que basta mudar uma letra à última palavra para bater tudo
certo.
a) Qualquer semelhança com personagens, ou situações, da vida
real é, obviamente, pura coincidência.
b) Designação descoberta na blogosfera e não invenção minha.
Abraço.
Lisboa, 9 de
Outubro de 2014
Octávio Santos
Não vou elogiar, apenas comentar a escrita criativa, coisa que sempre admirei. O meu comentário principal vai para o nome "cigarras mandrionas", que nunca vi nem na blogosfera, mas que me parece calhar bem em muita gente, mas não em toda toda felizmente. Depois, o outro comentário é para o "ONG" brincalhão que soa agradavelmente conforme está no texto e que, por coincidência, serve para ONG tal e qual e também para as três primeiras letras de ONGOING.
ResponderEliminarCaro (a) Anónimo (a),
EliminarPode-se perfeitamente admirar sem elogiar, porque se pode apreciar o estilo e a inventiva sem estar de acordo com os conteúdos, embora neste caso, tratando-se de uma fábula, os ditos não fossem assim tão importantes. As “Cigarras Mandrionas”, que somos todos aqueles que, segundo a ninhada do Coelhinho de Massa Ruim, vivemos acima das nossas possibilidades e méritos, são da minha lavra: Picasso dizia que “o génio copia e o medíocre imita”, e eu que não sou nem um nem outro, limito-me a inventar as minhas coisas. Quanto ao “ONG” nada tem a ver com a ONGOING, porque do Brasil já nos bastaram a VIVO e a OI, e também porque, como disse, qualquer semelhança com personagens, ou situações, da vida real é, obviamente, pura coincidência.
Abraço ou beijo
Octávio
Caro autor
ResponderEliminarPenso que esta fábula traduz muito bem o momento que atravessa o mundo e em particular Portugal.Não tenho a menor pretensão de me pronunciar sobre esses meandros da política,o que aliás seria desnecessário. O autor,com toda a sua criatividade,vai-nos descrevendo toda a sequência de esquemas a partir das instituições internacionais que controlam a alta finança,até ao nosso pequeno mundo, povoado de cigarras.Umas endinheiradas,outras vivendo acima das suas
possibilidades,e ainda as que, apesar de andarem à míngua,não deixam de sorrir. Dizia o meu primo (artista plástico): Pobrete,mas alegrete!!
( F.I. )
Cara Anónima F.I.,
EliminarEmbora fracote na minha vã imitação do Senhor de La Fontaine, lá vou escrevendo aquilo que me vem à cabeça para que os leitores possam arquitectar coisas que, muitas vezes, não tinha a pretensão de dizer. Seria uma ofensa para aqueles que têm muito pouco, ou mesmo nada, se eu tomasse para mim o “pobrete, mas alegrete” do seu primo artista; prefiro um “ironicamente à rasca”.
Octávio