A semana passada tive umas ideias no duche do
Holmes Place mas hoje, para além de não me ter passado uma única pelo bestunto,
tive um choque quando, depois do duche, ao dirigir-me ao alfarrabista do Elias
Garcia passei à porta da AICEP diante da qual estavam três colegas a fumar um
cigarrinho. De longe pensei que ia ter dois dedos de conversa mas ao aproximar-me
dei-me conta que não conhecia nenhum deles, e daí o terrível choque do qual
talvez não possam compreender a violência. Tive sorte (no fim tenho sempre
sorte) porque, antes de ir ao ginásio cansar o corpinho, fui salvo por uma
cadeira que me deu ocasião para vos poder dizer alguma coisa. É que ele há
cadeiras e cadeiras, como há escritas e escritas. Explico-me. Quando temos
necessidade de uma cadeira para nos sentarmos compramos uma que sirva para isso
mesmo, pesando entre a beleza, o conforto e o preço. Se temos dinheiro a mais,
e para nos sentarmos já temos cadeiras suficientes lá em casa, vamos à procura
de uma cadeira de design, melhor se
com uma assinatura prestigiosa, pouco importando se, ao chegarmos a casa, ela
sirva para tudo menos para nos sentarmos. Quando vos disse hoje que a minha
escrita “é cada vez mais confusa, inconsistente e aleatória,
sem um fio condutor que separe alhos de bugalhos” foi para vos alertar que,
para vosso descanso e tranquilidade, não devem ler esta minha escrita de design duvidoso, mas sim precipitar-vos
a comprar “EL James” que tem muito mais para ler e é, sobretudo, muito mais
confortável. E como não me vieram mesmo mais ideias, decidi ressuscitar hoje
três textos meus de datas diferentes só para não dizer que não vos dava nada
inútil e incómodo a ler. Se possível bem sentados.
1 - Porque me propus contar todos os meus
encontros com gente que conta, começando pelo mais fugaz.
O Menino era pobre, ou aquilo que se chamava
de remediado, e nasceu na Lapa, em Lisboa, na parte errada da Travessa do Moínho
de Vento. O Francisquinho era rico e nasceu na mesma Lapa, numa das ruas da
parte certa do bairro, S. Caetano ou Sacramento, já não me lembro. À casa do
Menino vinha em visita, em algumas tardes de Domingo, e falo das décadas de
40/50 do século passado, uma prima direita do seu Avô materno, de seu
nome Sofia, que tendo vindo muito nova, da sua aldeia natal, servir para Lisboa,
estava naquela altura em casa do Sr. Henrique e da Sra. D. Maria Adelaide – que
era bisneta de D. Pedro IV de Portugal e I do Brasil – onde era criada dos
meninos do endinheirado casal. Um dos meninos da casa era o Francisquinho, que
teria mais seis anos que o Menino. A Prima Sofia, assim era chamada, era muito
forreta e aparecia em casa dos primos afastados de mãos a abanar, nem
uns bolinhos secos que fosse para acompanhar o chá que a prima – Mãe do
Menino – lhe oferecia. Num dia 23 de Novembro, seria um Domingo, a
Prima Sofia, depois dos cumprimentos e hipocrisias habituais, veio dar um
beijinho de parabéns ao Menino, que fazia anos nesse dia, 7 ou 8,
entregando-lhe um embrulhinho muito bem feitinho, que teria a dimensão de uma
caixa de fósforos pequena. – Então, o que é que se diz à Prima? - recomendou
a Mãe do Menino, que, após um rápido e
ciciado “Obrigado!” abriu o presente que era nem mais nem
menos que um apara-lápis de plástico preto. Voltou a agradecer, e num
exame mais atento à prenda de anos, o Menino verificou que o mesmo era usado
tendo mesmo um cantinho partido. Coisa sem a mais pequena importância.
Acabada a visita, depois da meia hora de despedidas exigidas pela
cerimónia, o Menino mostrou a prendinha aos seus Pais, fazendo notar a sua
condição objetiva de segunda mão. Foi uma risota, confirmou-se o “pãodurismo”
da Prima Sofia, que devia ter muito de seu, tantos anos a trabalhar em
casa de gente rica, dizia a Mãe do Menino, e tanto o objeto como o
episódio ficaram conhecidos naquela família como o “Apara-Lápis do
Francisquinho”. Mas, acabado o relato desta história verdadeira, já
é tempo para as apresentações: o Menino, ou seja o prendado
aniversariante, chama-se (chamo-me) Octávio Carmo de Oliveira Santos,
e o Francisquinho, tão amado bijou da Prima Sofia, que de certeza
não deu pela falta do seu afiador partido, dá pelo nome de Francisco José
Pereira Pinto Balsemão, e quis o destino que, durante a apresentação de um livro, nos cruzássemos no El Corte Inglès
na passada segunda-feira, tendo dele recebido, agora diretamente, a prenda da
sua mão, que me estendeu para que eu apertasse. Assim, à distância de sessenta
e poucos anos, as mãos que tinham segurado o mesmo objeto, encontraram-se
finalmente numa demonstração da harmonia que rege este nosso Mundo.
2 - Porque sempre fui atraído pela loucura.
Arturo Benedetti Michelangeli, que foi um dos maiores pianistas clássicos
do século passado (1920-1995), era um génio irrascível e insuportável que,
durante toda a sua longa carreira, concedeu um único bis, e esse em honra do
seu amigo Sergiu Celibidache, maestro tão genial quanto ele. Uma noite, em
Londres, recusou-se a tocar quando ao entrar na sala de concertos se apercebeu
que eram mais os turistas que os verdadeiros amantes da música e da sua arte. E
ninguém o demoveu. Estando um dia a escolher um piano de cauda para um seu
concerto, decidiu-se, após experimentar uns quantos, e para espanto de todos os
que o acompanhavam, por aquele que o representante da marca tinha desaconselhado.
– Levante a tampa se faz favor, pediu ao seu interlocutor, que prontamente obtemperou.
– Como vê, o escapamento deste martelo está montado defeituosamente! E
efectivamente estava, tendo-se o representante prontificado a chamar
imediatamente um técnico para solucionar o problema. – Deixe tudo como está,
ordenou Michelangeli, por favor não lhe roube a alma! (a)
O seu amigo Enzo Ferrari vendo-o extasiado diante de uma Berlinetta num dia
em que o maestro visitou Maranello, lha ofereceu; dizem que passou a conduzi-la a
alta velocidade, como um louco, pelas estradas municipais da sua Lombardia. Perto
do fim da sua carreira fez-se sócio de uma empresa discográfica, tendo-se posteriormente
recusado a gravar para ela, o que a levou à falência, na sequência da qual o
fisco italiano lhe confiscou todos os seus bens, incluindo os pianos (a). Amargamente desiludido com o seu país natal transferiu-se para os
arredores de Lugano, tendo dado no Vaticano o seu último concerto na península itálica
- única forma de não ver o cachet confiscado - em 1987, em honra do Papa João
Paulo II.
3 - Porque tendo encontrado o Vara e a Mulher
às compras no El Corte Inglès, cheguei a casa e escrevi este soneto.
Mulheres
Deve ser chato ser namorada do Guevara.
Esperança ter, não na vida mas na morte.
O mesmo valendo p’rá mulher do Armando Vara
Que vi com ele às compras no inglês El Corte.
Compram de tudo, cebolas e batatas,
Laranjas, figos e um presunto inteiro.
Doce viver na Costa das Negociatas
Seguro de não ser p’ra si o Limoeiro.
Estando em casa, com a esfregona e a lixívia,
A amante do Che tem a alma em polvorosa
Pressentindo o que se passa na Bolívia.
O coração apertado também tem a do Vara
No meio das prateleiras, tremendo ansiosa
Com medo que o povo lhes cuspa na cara.
Abraço.
Lisboa, 2 de Julho de 2015
Octávio Santos
a) Lembrei-me agora, a propósito do que escrevi acima sobre Arturo Benedetti
Michelangeli, que a Europa está em risco de cair na asneira, e erro histórico,
de roubar a alma ao povo grego e de confiscar os pianos ao Siryza, quando num
passado recente outros, então muito poderosos, não se atreveram a calar a
música de Solidarnost.
Uma ex-colega enviou-me pelo Google este post de um Blog que conheço mas há muito tempo não visitava. O elogio que fez deste post aguçou a m/curiosidade e é certo que fui compensada. Este comentário antes da meia-noite de hoje não será a última coisa que faço na vida, espero bem, mas é o último comentário do meu dia.
ResponderEliminarCara ex-colega anónima,
EliminarMuito obrigado pelo seu comentário encorajador, que não será seguramente o último da sua vida, já que preciso de pessoas assim para ter uma razão para continuar a escrever.
Abraço
Octávio