Após as reticências que vos
deixaram em suspenso na última crónica, hoje repito que o romance de Eco, “A
Misteriosa Chama da Rainha Loana”, é todo uma outra coisa. O nevoeiro que nos
torna tudo desfocado e fluido, da sua Alessandria natal (Lissandria em piemontês,
patrono S. Baudolino, tás a topar oh meu!), e não Alexandria (de Nasser) como
se lê erradamente na badana, dos vales do Bormida, do Tanaro e do Pó, das
montanhas piemontesas e da ausente memória autobiográfica do protagonista,
fornece ao autor motivo para páginas e páginas de alta literatura, a começar
pela citação de inúmeros textos que outros grandes seus pares lhe dedicaram, de
Abott a Dickens, de Dante a Pirandello, de D’Annunzio a Pascoli, de Emily
Dickinson a Shakespeare, de Savinio a Campana, de Flaubert a Baudelaire. Deste
último não resisto a recitar, isto é, a citar a citação: “Agora um mar de
nevoeiro banhava os edifícios, e os moribundos no fundo dos asilos”. Como não
resisto a constatar que Eco não deve ter tido grandes relações com Tabucchi,
senão não teria passado ao lado de Pessoa e do nevoeiro que envolve a sua
“Última nau” (Mensagem, Mar Português) e o seu ilustre e desejado passageiro:
Vejo entre a cerração teu vulto baço
Que torna.
Não sei a hora, mas sei que há a hora,
Demore-a Deus, chame-lhe a alma embora
Mistério.
Surges ao sol em mim, e a névoa finda:
A mesma, e trazes o pendão ainda
Do Império.
Ou o seu “Nevoeiro” (Mensagem, Encoberto):
Ó Portugal, hoje és nevoeiro.
É a hora!
Nesta onda poética, e querendo sempre chegar-me à frente em bicos de pés, escrevi agora esta:
Na Feira Popular
O algodão doce que levo à boca
É nevoeiro que faz com que a tua imagem
Me lembre uma pomme
d’amour!
Então, entro descalço
(sem ninguém ver)
Na tua alma, que não sujo.
Liberto-me já deste nevoeiro sem
eco de Pessoa, para não me deixar envolver por ele que, tão denso que se
poderia cortar à faca como se fosse manteiga (“…o fumo amarelo que esfrega o
focinho pelos vidros…”), perpassa em cada página deste livro difícil, e tenho
de fazer atenção para não cair na esparrela de me pôr também a contar sonhos já
que não conseguiria nunca descrevê-los com esta mestria - “Adormeci logo, e
sonhei com terras e mares do sul feitos de tiras de nata distribuídas em longas
tiras no prato da compota de amoras”. Fora então do nevoeiro e dos sonhos, para
minha salvação, pois que para mim, que escrevo simples, não é fácil entrar na
literatura de Umberto Eco, e eu já o devia ter adivinhado porque o “recado” já
me tinha sido dado, e por duas vezes. Quando foi publicado “O Nome da Rosa”
comprei-o imediatamente e comecei a lê-lo num avião entre Sófia e Viena,
tendo-o esquecido ao desembarcar. Novamente o adquiri, mas como estava a ler
outra coisa emprestei-o a um cidadão búlgaro – alguns falavam português por via
de estadias de serviço “fraterno” em Moçambique -, que tendo nas mãos coisa
proibida, e como tal apetecida, saiu do meu raio de alcance, não mo tendo nunca
devolvido. Assim, confesso que nunca li “O Nome da Rosa” embora tenha visto o
filme, o que não é a mesma coisa e me põe ao nível daquele que nunca tendo lido
a Bíblia, dizia não valer a pena já que tinha visto o filme um ror de vezes. Quem
não leu “Se isto é um Homem”, de Primo Levi, pode ter visto todos os filmes,
alguns extraordinários e estou a lembrar-me de “A Vida é Bela”, que se fizeram sobre a Shoa, mas não tem a noção exacta até onde o horror conseguiu chegar.
Não é fácil, como afirmei acima, entrar na literatura
de um escritor difícil que, neste livro, revolve sótãos e baús das suas
recordações perdidas na ânsia de compor um passado – “as lúgubres e duráveis
recordações, este raio de morte que deixamos ao viver” - tornado ainda menos
decifrável por se referir a geografias, cronologias, livros, jornais, discos,
factos, ocorrências e episódios que só por vivência se podem conhecer, e que,
mesmo a quem aí viveu por mais de uma década, passam por filtro de malhas
demasiado largas, não retendo senão uma pequena parte, embora seja curioso, e
para mim muito gratificante, que coisas desconhecidas deixem de o ser por se
casarem com coisas conhecidas que nelas encaixam. Com isto não estou a dizer
para não lerem o livro, antes pelo contrário. Já aconteceu a todos ouvirem hoje
falar de uma pessoa, uma coisa ou um assunto, pela primeira vez, e logo no
outro dia voltarem a ler ou ouvir algo sobre o mesmo tema, e a mim, que comecei
a ler este livro dois dias após a morte de Oliver Sacks - outro velho de 82
anos como Khaled al-Assad, guardião de Palmira (ver crónica de 9/9) -, deparo,
logo na página 15, com o protagonista a falar de um homem que confundia a
mulher com um chapéu, e a fila de processionárias, animalzinho que desconhecia
até nos fazer passar dois meses de complicações cutâneas só porque o vento nos
soprou os seus pelos malignos no pescoço; depois foi a canção e o filme “Bellezze in Bicicletta”, com SilvanaPampanini, dita Nini Pampam, que faz 90 anos amanhã e conheci em 1994,
já entradota nos anos, quando foi madrinha de “Lisboa, Capital da Cultura Europeia”
na cerimónia da sua apresentação em Roma, e o Rei Umberto II, o Rei de Maio,
que a imprensa fascista chamava de Estrelaça, o Herdeiro, perenemente em fuga
que acabou em Cascais, onde me lembro bem de o ver na praia e de o meu Pai nos
advertir: - Vá meninos, vão jogar à bola lá mais para longe porque está aqui o
Rei da Itália e não quero que o incomodem. Coincidências e recordações!
Aprendi também que o relógio de
cuco é bávaro e não suíço, coisa que desconhecia mas agora, pensando bem, me
parece natural ou não fosse essa adorável avezinha a que põe os seus ovos nos
ninhos dos outros para não ter de os chocar nem de lhes dar de comer no bico, mas não
é por estas singularidades que o livro vale a pena ser lido, ou melhor, tem de
ser lido. O facto é que o Umberto é um brincalhão que consegue com as suas
brincadeiras dar ainda maior densidade e veracidade aos seus escritos, jogando
com os conceitos e os episódios que, tenho a certeza, lhe vêm à cabeça no
decorrer da escrita, encontrando a forma mais dissimuladamente cómica de os
encaixar no seu texto, mesmo que seja para despertar uma memória adormecida
como é o caso do protagonista deste seu livro. Senão vejamos:
- A Mulher aconselha-o a dar um
passeio matinal pelas ruas de Milão, pedindo-lhe para lhe trazer um ramo de rosas.
E ele vai, mas aparece em casa com um frasco contendo um par de testículos de
cão, em formol, restos de um laboratório científico do século XIX. Um autêntico
achado por 40 mil liras! Pena não ter consigo dinheiro suficiente para levar
também os “de gato, de galo e de outro bicho, com rins e tudo mais.” Comentário
da Mulher, que para a próxima vez o acompanhará para não arriscar “…que voltes
para casa com uns testículos de dinossauro e a ter de chamar um pedreiro para
alargar a porta para poderem entrar.”, – “Será que tens a consciência de que és
o único homem no mundo, o único à face da Terra desde Adão, a quem a mulher
manda comprar rosas e volta para casa com um par de tomates de cão?”. “Não foi
por acaso que pediste um ornitorrinco à tua irmã! (que vivia na Austrália, nota
minha).
- Ou quando, na casa de campo em
busca do passado, entrou na casa de banho para acabar de ler o jornal, e lhe
apeteceu ir fazer cocó à vinha, a ouvir os pássaros e as cigarras. Acabada a
tarefa, “tinha comigo o jornal e rasguei a página dos programas televisivos"
(parece que estava em Portugal – nota minha), para se limpar; “levantei-me e olhei para as minhas fezes.
Uma bonita arquitectura em caracol, ainda a fumegar. Borromini. Devia ter o
intestino em ordem, pois é sabido se só nos devemos preocupar se as fezes são
demasiado moles ou até líquidas”. Aqui lembro-me da cruzada que lancei contra o
Renova preto por mais que evidente perigo para a saúde pública, mas não sou o
Eco, que continua a sua incursão escatológica incomodando Proust. – “O cocó não
era ainda a minha infusão de tília – estava-se mesmo a ver, como podia eu ter a
pretensão de levar por diante a minha
recherche com o esfíncter? Para reencontrar o tempo perdido, a diarreia não
serve, mas a asma sim. A asma é pneumática, é sopro (embora penoso) do
espírito: é para ricos que se podem dar ao luxo de ter quartos forrados a
cortiça (anúncio Amorim? – nota minha). Aos pobres, nos campos, não lhes sai da
alma, sai-lhes do corpo”, e termina muito elevadamente: “Os caminhos do Senhor
são infinitos… passam também pelo olho do cu.”
Tenho a certeza, sinto-o já, que
este livro de Umberto Eco, que é o primeiro que leio dele (e confessando-o
estou a arriscar a minha reputação), vai ser tão importante para mim como foi
para ele a descoberta daquele “…livro, de capa policromática…La Misteriosa Fiamma della Regina Loana…
e deparei com a história mais desenxabida que alguma vez a mente humana pôde
conceber….Enfim, uma história mesmo muito parva.” Mas que, mesmo assim, acordou
o seu protagonista envolto em nevoeiro.
Cansado de Eco, ou defendendo-me
para que ele não tome conta de mim, cito de memória uma brincadeira que repito
muitas vezes aos meus Netos (chato de merda, devem pensar, mas limitam-se a dizer,
já disseste isto cem vezes), e que agora, que a repeti mentalmente não me
perguntem porquê, ou sei mas não digo, começa a ter sentido:
No tempo em que os submarães
alaminos
Atacavam Moscavém e Sacavide
No tempo em que os barbarós subiam às arvóres
P’ra comer os passarós
Alguém que por ali passia assim disava:
Mas que mudagem de linguança vem a ser esta!
Tudo me torna à lembrança, coisas
velhas e coisas novas, no meio deste nevoeiro, cerração para Pessoa, sem um fio
condutor que as torne consumíveis por outros fora de mim; dizia Yambo, o
protagonista de Eco, para Paola, a Mulher que acabara de conhecer sem
reconhecer: “Sabes que as citações são os meus únicos faróis no nevoeiro”.
Abraço.
Lisboa, 24 de Setembro de 2015
Octávio Santos
PS: Longe de mim querer
dramatizar o que se passa nas fronteiras externas da União Europeia, mas deixo aqui
o meu repúdio absoluto pela utilização do arame farpado, repúdio que sinto visceralmente
desde que visionei este dueto. Apraz-me, no entanto, constatar que o
produto em causa não foi ultimamente por nós exportado para a Hungria, e que,
para a nossa vizinha Espanha, único caso em que as nossas exportações
apresentam um incremento substancial (27,56%) nos primeiros 7 meses de 2015, em
relação ao período homólogo de 2014, tal aumento sirva para conter ímpetos de
vacas ou porcos, se bem que me assinalaram movimentos suspeitos do lado de lá
da raia, na zona de Olivença (Olivenza).
A esta hora da madrugada, venho dizer que adorei "No tempo em que os submarães alaminos atacavam Moscavém e Sacavine" e também o que vem antes e depois. Não sei porquê!
ResponderEliminarCaro(a) Anónimo(a),
EliminarVai saber porquê quando entrar numa livraria e comprar, ler e reler o livro de Eco, que é muito mais sério que aquilo que pode parecer (as iludências aparudem), indo à net descobrir todos os segredos que o mesmo contém, começando já por esta cançoneta cujo tradução no livro não nos diz nada: http://www.vagalume.com.br/rita-pavone/pippo-non-lo-sa.html
Abraço
Octávio
Tem, mas tem mesmo, que ler o Nome da Rosa e o Baldolino e todo os outros Ecos, mesmo porque a Rainha Loana é um Eco atípico e daí não, porque uma das marcas da genialidade deste octogenário é a sua capacidade de ser diferente em cada livro - e deixar-nos rendidos à sua espantosa juventude conceptual. Adoro este filósofo, semiólogo, ensaísta, linguista, et pour cause, escritor e declaro-me em humilde e pasmada ação de graças perante a genialidade do homem. Obrigada por me lembrar o Eco, porque tenho «O número zero» novinho em folha para ler e vou já metê-lo na valise para o México ai, vou vou, que é certamente um excelente contraponto às maravilhas locais, dos mariachis aos manatins. Quanto a esta sua saborosíssima crónica, meu amigo, trata-se de alimento concreto para a ialma, de certeiros e apurados condimentos cujas iludências não aparudem coisíssima nenhuma e, pelo contrário (ou avisa o verso), confirmam a qualidade intrínseca deste seu delicioso petisco escrito ao vapor (que é uma outra forma de nevoeiro).
ResponderEliminarAbc.
F
Cara Florinda,
EliminarA genialidade “deste octogenário” (obrigado pelo aceno de esperança) é a de nos fazer chegar todos os ecos daquilo que aprendeu estudando e daquilo que aprendeu vivendo, oferecendo-nos, ora as recordações da sua vida enevoada, ora o saber da sua cultura iluminada, tudo aparentemente grátis e como se nada fosse, e digo aparentemente porque o que nos dá vai muito para além do imaginável, embora só o descubramos a conta gotas, e o preço a pagar, e falo por mim que estou atrasado, é a “obrigação” de me pôr agora, septuagenário, a ler tudo o que o génio nos legou, e vai ainda legar, por sentir que tudo o que dele ler me vai fazer falta para o resto dos dias. Boa viagem ao México, e bebam lá um mescal com gusano à minha saúde; sabe que, falando de manatins, me deu a ideia de os comparar ao Umberto Eco, em contraste com muitos escritores best sellers à moda que, ao pé dele, me parecem golfinhos do Zoo Marine. Será que já se fez um estudo comparativo do QI destes dois mamíferos?
Abraço
Octávio
PS: Envolvido no mesmo nevoeiro que envolve perenemente a planície do Pó permito-me recomendar-lhe outro escritor italiano, Alberto Bevilacqua, este de Parma e já falecido, mais vida que cultura, mas que vida!
Caro Ostinato,
ResponderEliminarVeremos quando terei oportunidade de ler «A Misteriosa Chama da Rainha Loana». Por enquanto, está esgotadíssimo. Porém, o que verdadeiramente quero realçar nesta crónica, é a beleza do seu doce, sensível e delicado poema. (F.I.)
Cara Anónima F.I.,
EliminarLembre-se que o livro não se intitula “A Misteriosa Chama da Rainha Anónima”. Muito obrigado pela sua apreciação do meu poeminha; mais uma vez a enganei, e a todos, já que provei que alguém amargo por opção, insensível por interesse e indelicado por natureza, pode, num exercício de manipulação de palavras, fingir o contrário.
Octávio