Por muitas piruetas, cambalhotas e contorcionismos que faça no
ginásio duas vezes por semana, não voltarei nunca mais a conseguir benzer-me
com o dedo grande do pé direito – pelo sinal da Santa Cruz, livre-nos Deus
Nosso Senhor, dos nossos inimigos… -, como fazia em cima da cama nas manhãs de
domingo, em brincadeiras com os meus irmãos, agarrando o pé com ambas as mãos e
levando-o à testa e ao queixo, lembrando-me de uma velha que vivia na aldeia da
minha Avó e que tinha no queixo um sinal cheio de pelos, e era sempre uma
risota pensando na velha a benzer-se e a dizer pelo sinal com o polegar em cima
do sinal com pelo, recordando-me agora que uma vez a minha Avó estava no quintal
sentada num banquinho a falar com uma vizinha/prima (eram todos primos) e eu
cheguei-me e disse-lhe que a Mari Felícia (a velha) parecia uma cabra com
aqueles pelos no queixo, e aí a minha Avó ficou muito corada e mandou-me
embora: depois chamou-me para me ralhar porque ficara muito envergonhada com a
prima Purificação porque ela era irmã da Mari Felícia, e nós temos de ter
sempre cuidado com a língua pois nunca sabemos com quem estamos a falar, lição
que nunca aprendi, o que se calhar até foi bom porque me sinto leve, tão leve
que até os bolsos vazios ajudam, e não pensem que, nos dias de hoje, isso não
contribui para esta estranha leveza que carrego comigo.
Todo este intróito porque estou a ler dois livros ao mesmo tempo,
ambos importantes (todos os livros são importantes), diferentes em tudo e que,
por isso, se podem ler ao mesmo tempo visto não haver contaminação possível,
embora eu tenha descoberto que o nevoeiro que domina todo o romance “A
Misteriosa Chama da Rainha Loana”, de Umberto Eco, italiano de Alessandria, que me fez tornar à memória
o episódio autobiográfico pio-circense que abre esta crónica, caiu sobre as
ruas do Cairo e insinuou-se na alma dos habitantes do “Edifício Yacoubian” que
assim se intitula aquele do escritor egípcio Alaa El Aswany. Começo por este último que a minha Filha
Margarida me ofereceu, numa tradução francesa do árabe (Egipto), talvez para
que eu não falasse de assuntos que desconheço (os ignorantes são abelhudos), já
que a única coisa que sabia do Cairo, para além dos postais ilustrados, é que
na década de 70 viviam nos jazigos dos seus cemitérios mais de um milhão de
pessoas, e isto foi-me dito por um dos “meus” saudosos Embaixadores (os de
Sófia já se foram todos), e fala o mesmo sobre a vida quotidiana na capital egípcia,
e também em Port Saïd, tendo por fundo, no nevoeiro da memória, a nostalgia do esplendor da monarquia no
tempo em que o Rei Faruk reinava também na Via
Veneto da Dolce Vita, a revolução do Movimento dos Oficiais Livres, de Gamal Abdel
Nasser, a transformar tudo e todos em 52/53, os conflitos que se seguiram à
nacionalização do canal do Suez, até aos dias de hoje, que, após a morte do raïs em 1970, abriu a porta a uma nova
era de extremismos que deu no que deu, isto é, “uma sociedade dominada pela corrupção
política, a ascensão do islamismo, as desigualdades sociais, a ausência de
liberdade sexual, a nostalgia do passado” como li na contracapa. Não é meu
hábito ler um livro sem sublinhar muitas passagens ou tomar muitas notas para
uso futuro, mas desta vez, embora o romance seja didáctico e eu tenha aprendido
muitas coisas que não imaginava, fui atraído principalmente por parte de um
diálogo, a dez páginas do fim, travado entre um jovem torturado pela polícia
que se põe, por raiva e desejo de vingança, à disposição dos Irmãos Muçulmanos,
e o emir do campo de treino
clandestino onde foi afectado à espera de uma missão:
- Juventude do islão, o vosso dia chegou. O alto conselho Jamaa
escolheu-vos para levar a cabo uma operação importante, diz o emir.
- Que Deus seja louvado, Deus é grande!, responde o aspirante a
mártir.
- É a vontade de Deus. Que ele vos abençoe e acrescente a vossa fé.
É por causa disto que os inimigos do Islão tremem. Eles têm medo de vós porque vós amais a morte tanto como eles amam a vida, sentencia o emir pondo fim ao diálogo.
O romance parece terminar com a descrição do nosso herói a ser
abatido a tiro numa rua do Cairo: “Sentiu-se envolvido num bem estar estranho
no mais profundo do seu ser. Depois, vozes longínquas, sobrepostas,
chegaram-lhe aos ouvidos: toques de sino, cânticos, hinos murmurados em
ladainha, vinham até ele como para o acolher num mundo novo”, mas o autor
reservou ainda as 4 páginas finais para nos transportar ao restaurante Maxim, oásis de um passado faustoso,
onde, Cristina, a proprietária grega, mantinha o mais alto nível de serviço e
cantava Piaf ao piano (...non, je ne regrette rien...), para a festa de casamento entre um ancião rico
proprietário de um apartamento de luxo no edifício Yacoubian, e uma jovem
proletária que habitava num dos inúmeros tugúrios construídos no terraço do
mesmo edifício após a revolução. Então, os convidados da noiva, de boca aberta
diante da magnificência, nunca imaginada, do local, sobrepuseram a sua vontade
àquela dos convidados do noivo e, afastando Cristina do piano, pediram à
orquestra que tocasse música própria para danças orientais; os habitués, primeiro timidamente e depois
com alegria e entusiasmo, começaram a bater as mãos, os homens, e a fazer youyous, as mulheres, invadindo a pista
de baile. Será que vai acabar tudo assim?
O romance de Eco é toda uma outra coisa. O nevoeiro que nos torna
tudo desfocado e fluido… Não! Vou deixar este para a próxima crónica porque já
me alonguei e não quero perder audiência, mas não posso deixar de vos servir,
como sobremesa, o que ouvi cantar a duas Senhoras, ambas com mais de 60 anos.
Não sei porquê, ou sei mas não digo, em Portugal é mais conhecida e apreciada a
Laura “Pimba” Pausini que a hard
roqueira Gianna Nannini ou a indefinível, indecifrável e insuperável Fiorella
Mannoia, mas as canções, chamemos-lhe canções, “Dio é Morto” da primeira, e “Le Parole Perdute” da segunda, não podem deixar de ser
ouvidas e apreciadas, música, canto, letra e mensagem. “Siamo ancora in tempo, amore mio” como nos grita a Fiorella, ou
Deus, mesmo que no fim a Nannini o faça ressuscitar, nos virou definitivamente
as costas? Quem vai ganhar esta luta entre o Bem(?) e o Mal(?)? Os que desejam ardentemente a Vida como bem
supremo, ou os que aspiram à Morte, já que os ensinaram que é esse o fim último
a atingir? Há esperança ou não?
Não se aprende só com o que vem nos livros, sejam de Umberto Eco,
de Alaa Al Aswany ou de qualquer outro escritor, mas também com Iracy,
brasileira detida em Tires que passa o dia a coser à maquina bolsas e malas de
senhora, de alto design português
(Compra o que é nosso!), e o tempo restante a ler, que escreveu no seu diário: “Somos o que fazemos, mas o
melhor que temos a fazer é mudar aquilo que somos”. Seria uma citação?
Abraço.
Lisboa, 17 de Setembro de 2015
Octávio Santos
O post termina com uma sugestão de debate sobre o tema do bem e do mal, associado, segundo me parece, ao tema da vida e da morte. Sabendo que o bem e o mal fazem parte da natureza humana, isso para mim significa que cada um de nós tem dentro de si o bem e o mal e a escolha é de cada pessoa. A associação que faço ao tema da vida e da morte vem do facto de Ostinato ter sublinhado no diálogo do referido livro a frase "porque vós amais a morte tanto como eles amam a vida". Este tema, que me é tão caro, é difícil de tratar e menos ainda em blogue; no entanto, talvez Ostinato possa adiantar algo que faça uma diferença em relação aos actuais temas na opinião pública. É claro que o post de hoje mantém o nível habitual, na m/opinião.
ResponderEliminarCaro (a) Anónimo (a),
EliminarMuito obrigado por ter gostado do que escrevi. A frase sublinhada, como é absolutamente transparente, refere-se à tragédia que estamos a viver, e não vamos agora aqui apurar culpados. É tudo muito simples, se não quisermos falar politiquês, deixando isso a quem quer empoleirar-se através do nosso voto: o Mal está, desta vez, do lado daqueles que perseguem populações indefesas, obrigando-as a abandonar tudo, até a vida. O Bem está do lado de quem acolhe com dignidade essas pessoas, sem lhes olhar para o passaporte, a cor da pele ou o título do catecismo. O Mal está a ser personificado pelos construtores de muros que tanto sofreram no passado por existir o Muro. O Bem, neste caso, pareceu ter vindo finalmente daqueles que sucederam a quem, há 70 anos, tão Mal fizeram a tantos. Aqui entro em confusão mental porque sei (todos sabem) que a Alemanha é o maior fabricante e exportador de armas da Europa, e então deixo duas perguntas, para as quais não encontro resposta, esperando que quem me ler me ajude, começando por si:
-Pode-se fazer o Bem com a esquerda, esperando anular o Mal que se faz com a direita?
-Podem os que amam a vida vencer um braço de ferro com os que amam a morte?
O melhor talvez seja continuar a discutir os 600 milhões de euros, a pizza duplo queijo, as capas da Cristina, as birras do Carrillo e as bofetadas do Carrilho à Guimarães, porque o resto vai-nos passar ao lado mais uma vez neste cantinho do céu, ou, se preferirem, neste país do Carrilho.
Abraço
Octávio
Concordo imenso com o último parágrafo, mas penso que desta vez será difícil que "o resto" nos vá passar ao lado completamente, porque o mundo mudou bastante e a imaginação não me está a ajudar a ver como será "o resto".
EliminarCaro Ostinato,
ResponderEliminarAgradeço ter-me dado a conhecer estas duas intérpretes fantásticas, muito expressivas na forma de cantar, cujas músicas e sobretudo as letras das canções recomendadas,são maravilhosas pelas mensagens que nos tocam bem o coração.
«Dio è Morto» é um grito de desespero e de esperança de uma geração desajustada neste mundo caótico, que anseia pelo novo mundo para o qual se sente perfeitamente preparada, onde apenas prevalecerá o que for imanente ao AMOR ou DEUS. «Le Parole Perdute» transmite extraordinariamente o conflito da alma, entre aquilo que somos e queremos e aquilo que não somos mas devemos, por falta de coragem! (F.I.)
Cara Anónima F.I.,
EliminarNada tem de agradecer quando, ainda por cima, lhe impingi uma falsidade: “Dio è morto” não é da autoria da Gianna Nannini mas do grande poeta e cantor bolonhês Francesco Guccini, sendo esta a sua versão rock. Quanto à coragem, pode, por vezes, ser confundida com um acto de cobardia que esconde a verdadeira coragem.
Octávio