Já vos disse que
escrevo conforme a caneta que escolho e hoje, que queria continuar a escrever
sobre Umberto Eco, agarrei aquela errada – uma Parker 51 com 40 anos – e aqui
estou a dar-vos conta daquilo que percebi sobre um conceito reservado àqueles
que de política entendem, ou seja, de real
politik. Aqui há uns anos percebi também o conceito das contrapartidas
tendo-vos impingindo como quem não quer a coisa, sob a forma de “e-mailico triálogo”, nas
minhas crónicas de 6/2/2014 (acesso a um link)
e de 1/10/2015 (directamente no texto), pedindo agora desculpa pela repetição mas
os velhos são chatos e têm o hábito de repetirem aquilo que lhes parece
importante, sem se preocuparem se interessa também aos outros; eu, que tenho o
meu baricentro dentro de mim e não tenho o código de barras colado na testa,
estou-me mesmo marimbando para aqueles a quem estas coisas não interessam, seja
por preguiça ou por interesse. Mas vamos lá à real politik que, não sabendo eu explicar teoricamente, vos transmito
através de dois exemplos recentes:
1 - Itália/Egipto
Os dois grandes
países mediterrânicos tiveram desde sempre relações estreitas e privilegiadas,
bastando pensar a Cleópatra, César e Marco António, à Dinastia Ptolomaica, que
se seguiu à conquista de Alexandre Magno, e governou a província romana do
Egipto desde o ano 120 a.c., às pesquisas e descobertas arqueológicas levadas a
cabo durante os dois séculos anteriores (XIX e XX) por equipas técnicas
italianas ou, mais recentemente, a faraónica transferência do Templo de Abu
Simbel por via da construção da barragem de Assuão, tudo executado por empresas
e técnicos transalpinos. Hoje, em termos económicos, a Itália é o primeiro
fornecedor europeu de bens e serviços ao Egipto (90 milhões de consumidores) –
3º mundial depois dos EUA e da China -, cifrando-se o montante anual das trocas em 3
mil milhões de euros da Itália para o Egipto (maquinaria, equipamento e bens de
consumo), e em 2,5 mil milhões no sentido contrário (petróleo). O PM italiano
Matteo Renzi, que acaba de assinar em Roma com o Presidente Al Sisi, acordos de
comércio (elevar as trocas para 6 mil milhões em 2016), indústria, tecnologia e
inovação, e foi o único PM dos G7 a participar na Conferência de Sharm el
Sheik, disse: “ Neste momento o Egipto salva-se somente graças à leadership de Al Sisi. Tenho muito
orgulho na minha amizade com ele e apoiarei os seus esforços de paz, porque num
Mediterrâneo sem o Egipto não haverá paz. O Egipto é crucial para a Itália, não
só para pôr fim ao caos líbico, mas também porque é um grande parceiro
económico”. O ENI descobriu ultimamente as maiores jazidas de gás e petróleo do
Mediterrâneo, na zona de Zohr, offshore
egípcio. No meu e-mail de 10/2/2016,
alertei-vos para o caso de um jovem que deve ter metido o bedelho onde não era
chamado, tendo pago o seu atrevimento com a vida:
Giulio Regeni, 28
anos, mestrado em Cambridge, torturado e assassinado no Cairo porque se atreveu
a tentar compreender o que se passa no Egipto de hoje. O resultado é que as autoridades egípcias
desmentem, maldestra mas categoricamente, aquilo que todos sabem: o rapaz foi
levado pela secreta tal como outras 75 pessoas presas em 25/1/2016, noite em
que Giulio desapareceu, a somar às 40 mil detidas durante o regime de Al Sisi,
90 das quais desaparecidas. O Governo italiano apresenta condolências à Família
Regeni (o egípcio também), declarando que descobrir a verdade é a sua primeira
prioridade, manda uma equipa de técnicos ao Cairo para auxiliar os inquéritos,
puxa as orelhas com jeitinho ao sorridente Embaixador egípcio em Roma, faz
boletins da situação a toda a hora; “felizmente” que foram entretanto
assassinados dois técnicos italianos na Líbia, passando o caso Regeni para segundo
plano na opinião pública, o que significa que morreu ou que será embalsamado em
vida. Real Politik?
2 – Portugal/Angola (CPLP)
Não vos vou fazer
um desenho das relações luso-angolanas como vos fiz acima das italo-egípcias,
porque seria uma perda de tempo e só repetiria aquilo que todos já sabem, de El Dorado a Boca do Inferno, mas
posso-vos aconselhar a leitura do livro de Filipe S. Fernandes “Segredos e
poder do dinheiro””, que descreve exaustivamente o carrocel Santoro Finance
S.A. movido a pulso de ferro pela nova DDT Isabel dos Santos, para terem uma
ideia de onde estamos metidos. Mas tendo ouvido uns zum-zuns sobre a “Operação
Fizz”, que não sei se foi baptizada neste andaço de moda do gin, e lido o
editorial do Jornal de Angola do passado dia 4/3, intitulado “Caso ManuelVicente é vingança de colono”, confessando não ter percebido
grande coisa, resolvi especular sobre o assunto à minha confusa e abusiva maneira:
“Era uma vez um
Procurador do Ministério Público Orlando Figueira que tendo a seu cargo a
investigação dos dossiers BESA e BANIF corrupção transferência de fundos
branqueamento de capitais e associação criminosa que implicavam políticos e
generais angolanos o BAI o BCP o Activo Bank a Sonangol e a sua filha Primagest
a Portmill Investimentos e Telecomunicações S.A. os advogados BAS e Paulo Blanco
e calculem a compra de 8 apartamentos, 8 em Cascais no valor de 8 milhões de
euros pelo vice-presidente Manuel Vicente começou a receber atenções por parte
de figuras gradas do país das palancas foi até lá fazer conferências sobre
assuntos da sua especialidade a saber corrupção branqueamento de capitais
falsidade informática e veio de lá de tal maneira iluminado pelo sol da baía de
Luanda que arquivou o processo do BESA com o Sobrinho de algibeiras a abarrotar
e tudo tudo lícito por amor de Deus e pediu para ir para casa descansar mas aí
não teve nojo de mentir e foi exercer as
suas especialidades no complience do
BCP do qual a Sonangol é a principal accionista tendo-se agora lembrado um juiz
picuinhas de o acusar daquelas que eram as suas especialidades e repito
corrupção neste caso passiva de forma agravada branqueamento de capitais e
falsidade informática tendo mesmo tido a desfaçatez de implicar no caso por
corrupção activa o dito Manuel Vicente mais o advogado Paulo Blanco os quais
evidentemente não têm nada ver com isso o que no meu entender vai ser dado como
provado era melhor não ser e bem pode o Luaty Brandão mais os seus 14
compinchas esperar deitados e com fome e o Rafael Marques continuar a jurar a
pés juntos que tudo o que escreveu no livro “Diamantes de sangue” são verdades
como punhos que do lado de cá ninguém nem Marcelo nem Costa vai mover uma palha
por eles e neste caso também por nós porque somos todos vítimas. Real politik?
Lembrei-me agora
mesmo, sem ter de mudar de caneta, que, quando fui à Guiné Equatorial em 2009,
eu que sou picuinhas como o juiz do Fizz, assentei tudo no meu caderninho, bati
até foto onde não se podia bater, mas só mais tarde percebi porque é que nos
dois únicos empresários portugueses que o ditador Obiang aceitou receber junto
com o MNE Luís Amado, não entrou o representante da CGD (que ficou danado) e,
quando já acabada a visita, estávamos todos sentados no hotel em Malabo à
espera do transfer para o aeroporto, cheguei-me
ao MNE e disse-lhe, contrariando uma ranhosa de uma assessora que me fazia
desesperados sinais com as mãos (e as pulseiras) para não incomodar Sua
Excelência, que seria a primeira vez que não ia poder fazer um relatório fiel
do que vira e ouvira para o Presidente da AICEP, respondendo-me Sua Excelência
que não via o porquê. E eu escrevi tudo, só não falando do BANIF porque nesse
tempo Horácio Roque era vivo e o banco era sólido e não tinha problemas, não constando qualquer seu
representante da lista das empresas convidadas. Real politik?
E agora, porque não
vos posso defraudar, pego na Caran d’Ache prenda do meu Irmão pequenino na última
vez que foi ter comigo à Cidade da Praia, e vou-vos traduzir o primeiro texto
da rubrica intitulada “A Carteirinha de Minerva”datada de
31/3/1985, rubrica que, semanal até Março de 1998, tornada depois quinzenal por
força, não só da sua actividade didáctica, mas também, e sobretudo, dos
convites que recebia de todo o mundo para lições, cursos académicos e
conferências, e que Umberto Eco manteve até ao fim na última página da revista
“L’Espresso”, o último dos quais em 27/1/2016, tendo telefonado ao director
pedindo desculpa de ter de a interromper “por um mês ou dois”. Os textos de “A
Carteirinha de Minerva” (A) foram compilados nos volumes “O
Segundo Diário Mínimo” e no homónimo “A Carteirinha de Minerva”, estando agora
para serem publicados aqueles de 2000 até ao último (27/1/2016) num livro
intitulado “Pape Satàn Aleppe”, “citação dantesca que não quer dizer nada, e portanto
suficientemente líquida para caracterizar a confusão dos nossos tempos”, com o sub-título
“Crónicas de uma sociedade líquida”. Em nome da precisão, Eco começou a
colaborar com “L’Espresso” muito antes desta rubrica; desde 1965 que escrevia para
o semanário artigos de todos os géneros, desde a semiologia, sua matéria de
estudo e de ensino, à filosofia, à história, à política e à ética. Aí vai a
indigna tradução (B)
do texto, que para além de ser uma
extraordinária lição, tem um título que, “celebrando o erro e o acaso como
instrumentos de descoberta”, é para mim um conforto:
Que belo erro!
Estou iniciando uma rubrica. Já me aconteceu mais vezes e tive sempre força para
desistir durante o primeiro ano. O encontro obrigatório semanal corrói. Desta
vez talvez desista antes, estou só a experimentar, para agradar ao Director,
homem poderosíssimo e vingativo, à procura de novidade. Intitulo-a à
carteirinha de Minerva, sem referência à deusa da sabedoria, mas aos fósforos.
Quando acontece que a carteirinha esteja internamente virgem de publicidade, os
homens pensantes têm o hábito de aí tomar nota de ideias vagantes, números de
telefone de mulheres que um dia será oportuno amar, títulos de livros a
comprar, ou a evitar. Valentino Bompiani escrevia (e talvez escreva ainda) as
ideias que lhe passavam pela cabeça na parte de trás dos maços de
refinadíssimos cigarros turcos. Penso que conserve milhares de recortes de
maços nos seus arquivos, e muitas das suas iniciativas editoriais começaram
assim. Dado o número das fichas felizmente acumuladas, direi que o fumo não faz
mal.
Tenho para mim que seja
útil tomar notas de ideias nas carteirinhas de Minerva, e também Husserl fazia
qualquer coisa do género. Em Lovaina não conseguiram ainda decifrar tudo aquilo
que escreveu, e o reitor da universidade, que tem de destinar fundos para a
pesquisa sobre aqueles criptogramas, dizia-me entre o preocupado e o chistoso
que um homem que escreveu tantos folhetos (creio que sejam cem mil) não pode
ter sempre escrito coisas sensatas. No entanto as coisas que publicou são
cheias de sentido. Isto significa que a humanidade pensante se divide entre
quem se limita aos Minerva e quem depois coordena estes apontamentos num
discurso orgânico. E é aí que o pente tropeça no cabelo enriçado. De momento
carteirinhas: sobre o último livro não lido, sobre a intuição que nos
atravessou a mente na auto-estrada quando se travava para não acabar atrás de
um Tir, sobre o ser e o nada, sobre passos célebres do Fred Astaire. Depois se
verá.
Primeiro pensamento. Ando a seguir o
Colombo televisivo, e não tenho intenção de roubar o trabalho ao titular da
rubrica atinente. Simplesmente (e acontece todas as vezes que se relê a história
de Colombo) admira quanto se pode ir longe com uma ideia errada. Mais, com um
saco de ideias todas erradas: errado o cálculo das dimensões da terra, errado o
crédito dado a certos cartógrafos, errado o projecto de redenção dos selvagens
asiáticos, errado até o investimento económico. Pobre Cristóvão acabado assim
tão tristemente. E, no entanto, a sua descoberta revolucionou o nosso milénio.
Para este género de descobertas, feitas por engano, os ingleses têm um termo
que não existe no nosso léxico a não ser por decalque: “serendipidade”. É
curioso que o termo entre no léxico inglês por causa da história dos três
princípios de Serendip, escrita no
século XVIII por Horace Walpole. Na verdade, a história destes três princípios,
que encontram alguma coisa procurando outra, vem de uma antiga novela persa,
depois traduzida em italiano no Renascimento e passada a outras culturas
europeias, como também nos repetia Carlo Ginzburg no seu famoso ensaio sobre o
paradigma indiciário. O facto é que todas as grandes descobertas acontecem por
uma ou outra forma de serendipidade. E não estou só a pensar em Madame Curie
que deixou, por distração, a pecheblenda
em cima da cómoda, ou ao desventurado Bertoldo il Nero que, à procura do
pó de projeção descobre a pólvora. Cada grande descoberta acontece porque o
cientista (ou o filólogo, ou o detective) em vez de seguir as vias normais de
raciocínio se diverte a pensar que coisa poderia suceder se se hipnotizasse uma lei de todo inédita e idealmente possível,
a qual fosse capaz de justificar – se fosse verdadeira – os factos curiosos aos
quais, com as leis existentes, não se
consegue dar explicação. Mas esta lei inédita não aparece assim do pé para a
mão: vai-se, digamos, borboletando, passeando com a mente em territórios não
nossos. No fundo, o pensador criativo é aquele que decide fazer, em ciência e
consciência, o que Colombo fez por engano: “Dado que não encontro uma resposta
a este problema, porque é que não procuro a resposta a um outro problema, se
calhar completamente extravagante?”.
Treinar-se a arriscar o erro, com a esperança que alguns sejam fecundos. No fundo, até
escrever nas carteirinhas de Minerva pode ter a mesma função. Depende
naturalmente se lá escreve Kant ou se escrevo eu (a quem Luís Pancorbo atribuiu
uma vez o angustiante pensamento: “I can’t be Kant”). Às vezes temo que quem
nunca descobre nada seja aquele que só fala quando está seguro de ter razão.
Não é verdade aquilo que os nossos pais nos recomendavam: “Antes de falar
pensa!”. Pensa, está bem, mas pensa também noutras coisas. As ideias melhores
vêm por acaso. Por isso, se são boas, nunca são tuas completamente.”
Que maravilha! (Nota
do tradutor)
Lisboa, 10 de Março de 2016
Octávio Santos
A) “A Carteirinha de Minerva”, minha tradução de “La Bustina di Minerva”, não se refere, com explica o autor do texto aqui traduzido, “à deusa
da sabedoria, mas aos fósforos”. Conhecem bem os fumadores a
existência de carteirinhas de fósforos (QUINAS - Swedish Match), muito mais cómodas no bolso que as
caixinhas desde o tempo em que os isqueiros pagavam licença (ideia para o Centeno), e era naquelas
da marca Minerva que Eco tomava as suas notas. Como ele gostava muito de
brincar com as palavras, permiti-me escrever na carteirinha da imagem desta
crónica o único anagrama do seu nome que me veio à caneta (com a Parker não
teria lá chegado): E BEM O CURTO!!! Espero que todos vós também.
B) Tentei ainda dar um último retoque na minha tradução mas foi
pior a amêndoa que o cimento, e daí saiu um outro anagrama: RETOCO… E BUM! Mas
fico à espera que me respondam com outro: RETOCOU BEM! Tudo serendipidade…
RETOCOU (MUITO)BEM!!!
ResponderEliminarCOME TO UBER! Esta não agradaria aos meus leitores taxistas.
EliminarCaro autor,
ResponderEliminarNão desista, continue a dar uso ao seu “baricentro” e a manter os seus leitores acordados. Se aparentemente não reagem, será por provavelmente não se acharem à altura de o fazer e ficarem só por aquele prazer de ler e apreciar as suas crónicas.
Abraço.
L
Caro(a) Anónimo(a) L,
EliminarObrigado. O baricentro é automático, não tenho de o usar. Quem não se achar à altura basta usar "o erro e o acaso como instrumentos de descoberta". Espero que leia e aprecie a próxima que é mais do mesmo.
Abraço
Octávio
Reitero o referido no anterior comentário: é um prazer ler as suas crónicas, mesmo que por vezes não coincidam com as nossas perspectivas, mas aprendemos sempre qualquer coisa com aquilo que nos transmite.
ResponderEliminarMM
Cara MMM,
EliminarMuito obrigado pelo seu comentário; o cronista nem sempre tem ele próprio qualquer perspectiva, limitando-se a contar. Não calcula as coisas que tenho aprendido para vos transmitir aquilo que, na sua benevolente opinião, a faz aprender.
Um beijinho
Octávio