Umberto Eco dizia
que desejava que os seus leitores se divertissem tanto a lê-lo como ele se
divertia a escrever. Como é que os meus leitores se podem divertir a ler-me se
é com grande sacrifício, e trabalho, que me sento para escrevinhar esta meia
dúzia de linhas por obrigação semanal? Em Siena, na Toscana, realiza-se todos
os anos uma (na realidade, duas) corrida de cavalos, o Pálio de Siena, em que
cada cavalo, que representa um dos bairros da cidade, é montado em pelo por um jockey mercenário, corrida com algumas regras
mas sem quaisquer princípios éticos, na qual todos os comércios são tolerados. Uma das
regras é aquela que, dando a primazia ao quadrúpede, diz que o primeiro cavalo a
cortar a meta é o vencedor independentemente de ter ou não o jockey em cima. Isto para vos dizer que,
quando acabo de escrever cada crónica, me sinto como o cavalo vencedor sem
cavaleiro, não percebendo bem como aconteceu, só certo que o perdi pelo caminho.
Uma coisa que sonhei escrever, caso para isso tivesse saber e capacidade, era
um ensaio comparativo entre o Pálio e a política italiana, mas terei de deixar
isso para uma próxima reincarnação, limitando-me talvez a rascunhar qualquer
coisa sobre aquela portuguesa à luz das Lendas e Narrativas com uns pós do
Pátio das Cantigas, tudo acompanhado com a música dos Xutos e Pontapés, que é
como apetece tratar os protagonistas.
Eco, se alguma vez
tivesse participado no Pálio, acabaria à frente, ele e o cavalo, provando que a
força a nada serve sem a inteligência. E a sua está toda expressa no seu
penúltimo livro “Como viajar com um salmão”, já publicado pela sua casa editora
“A Nave de Teseu”, livro que é composto por textos que mais não são que uma
divertida súmula de instruções para uso: como desmentir um desmentido, como
sobreviver à burocracia, como fazer filosofia em casa, como evitar o carnaval,
como tornar-se Cavaleiro de Malta e, como diz o título, como viajar com um
salmão. Para aqueles que aconselham os aspirantes a escritores a não se meterem
em política porque esta não passa esta de um facto circunstancial, Eco
“ensinou-nos a não separar nunca a arte da ciência e da política. Nos vinte
anos do consulado de Berlusconi teve valor simbólico para a resistência de toda
a cultura europeia”, e isto são palavras do grande filósofo alemão Rüdiger
Safranski. Eco era “claro, divertido e mordaz” disse Giovanna Cosenza,
Professora de Filosofia, Comunicação e Teoria da Linguagem da Universidade de
Bolonha, com um doutoramento em Semiótica sob a orientação de Umberto Eco, seu
docente de referência: “Claro, porque tinha a capacidade extraordinária de
traduzir sempre em palavras simples e concretas os conceitos mais difíceis, as
relações lógicas mais abstractas, as reflexões filosóficas mais importantes.
Divertido, porque nas suas lições alternava o alto com o baixo, um léxico
rebuscado com palavras de todos os dias (asneiredo quando necessário), a
argumentação mais complexa com anedotas, e era frequente os alunos desatarem a
rir: nada é mais eficaz que ligar conceitos a emoções, e ele fazia-o. Mordaz,
porque era sempre directo e imediato, isto é, dizia o que pensava no momento em
que o estava a pensar; de fazer medo, tanto era o que ele sabia comparado o teu
pouco, o tudo e o nada”.
“Como é que faço a
explicar à minha Mulher que quando estou à janela estou a trabalhar?”,
perguntava ele que, no dizer de um dos seus alunos “nunca um chapéu cobriu
tanta inteligência, para além de toda a biblioteca que a sua cabeça continha”,
aluno que um dia lhe perguntou quem eram para ele os clássicos: “– São aqueles
que estudamos na escola, aprendemos a amá-los depois da escola, e nos prolongam
a vida”, foi a resposta do mestre que, talvez sem o saber, falava de si
próprio. Um dos maiores troféus do
“semiólogo por antonomásia” foi, no contar de Furio Colombo, jornalista e
comunicador, obtido durante uma conferência em Pequim, onde deparou com uma
sala cheia, a rebentar pelas costuras, mas de velhos. Dos jovens que esperava nem
o cheiro! Eco, só com o seu saber, a aterrorizar um inteiro regime preocupado com
o que ele poderia transmitir às novas gerações. Conta ainda Furio Colombo, seu amigo
desde os bancos da escola e agora sócio de “A Nave de Teseu”, ter-lhe recomendado
quando assentou praça, de não ir para a tropa armar em culto pois que isso
poderia prejudicar as suas relações com camaradas e superiores. Um dia passou
pela caserna para o cumprimentar e, ao informar a sentinela ao que ia, teve
como resposta: “- Agora não é possível porque o Professor está a ensinar”.
Recordando que acaba
de ser publicado em Itália, em 26/2/2016, o seu último livro “Pape Satàn
Allepe” (ver crónica da semana passada), deve ser dito que isto foi um gesto de
militância, para além de um acto de fé. O livro foi publicado pela nova editora
“A Nave de Teseu”, que Umberto Eco fundou com um punhado de amigos em Dezembro
de 2015. Tal como os outros accionistas fundadores, Eco quis meter areia na
engrenagem do monopólio da edição italiana após a aquisição da Rizzoli pela
Mondadori, propriedade do clan
Berlusconi. Ao financiar o projecto com 2 milhões de euros, declarou: “- É para
mim uma forma de luta contra o Alzheimer, mais eficaz que as palavras
cruzadas”. Todos os livros de Eco serão doravante editados pela nova casa
editora, à medida que se libertem dos
direitos.
Na minha crónica de
3/3, há 15 dias, falei-vos do seu amigo Moni Ovadia, judeu que passava com ele
noites e noites trocando entre si “furiosamente” as suas anedotas, a ponto de
Eco lhe ter perguntado numa dessas noites: “- Agora que já sei todas as tuas e
tu sabes as minhas o que é que vamos fazer? Não te preocupes, respondeu Ovadia,
porque a piedade do Alzheimer e da arteriosclerose nos fará esquecer todas para
depois recomeçarmos. Acontece que Ovadia referiu tudo isto na cerimónia de
despedida de Umberto Eco, e ainda uma anedota judaica que este lhe tinha contado,
tendo acabado a sua intervenção com uma bênção que considerou um dever judaico,
de não crente a não crente: “Que Deus te abençoe e te proteja, sobretudo porque não o crês...o bom Deus, na sua infinita misericórdia, suporta os crentes mas prefere os ateus”. Deixo-vos aqui a oração de Ovadia, não para que ouçam a anedota, mas para que se dêem conta da
atmosfera que envolveu a cerimónia fúnebre – que não teve nada de fúnebre -, e
sobretudo pela bênção que, sem saber se seria desejada pelo seu amigo, lhe deu
por dever da sua religião, da qual se declarou não crente. Paradoxo a provar que, mesmo
para homens sem fé, há qualquer coisa a eles superior.
Para acabar volto à
sua aluna Giovanna Cosenza que disse nestes dias: “Engana-se quem pensa que
Umberto Eco nos deixou. O Professor está vivo, está ainda no meio de nós, não
só porque vive nos textos que produziu e estão espalhados por todo o mundo, mas
porque vive nas dezenas de milhares dos seu ex- alunos que tiveram a sorte de
se apinharem nas salas onde leccionava, e o fizeram por meses e anos.”
Como é que faço a
explicar aos meus Netos que quando estou enfronhado num livro, numa revista ou
num jornal, ou de nariz levantado a cheirar o ar pelas Avenidas Novas e arredores,
ou na Avenida da Liberdade, estou a trabalhar, talvez também para eles? Ou
bastará dizer-lhes que “é preciso ser como as girafas para se comerem só as
folhas melhores ao mesmo tempo que nos aproximamos do céu”, como dizia o
Mestre.
Abraço.
Lisboa, 17 de Março
de 2016
Octávio Santos
Caro autor,
ResponderEliminarTenhamos a esperança que um dia os seus netos e outros jovens como eles, descubram o prazer que é aprender com aquilo que está na maior parte das vezes, tão somente à distância de um palmo.
Abraço.
L
Caro(a)Anónimo(a)L,
EliminarPenso que os jovens da geração dos meus Netos são felizes porque têm tudo o que pensam precisar de aprender à distância do seu próprio polegar.
Abraço
Octávio