No passado dia 16 acordei às 06.24 e, sem capacidade para pensar
alguma coisa de útil, pus-me a jogar com os números 6, 16 e 24, 6x4=24,
4x4=16, 24-16=8, 4+4=8,
8+8=16, tudo certo, tudo par mas sem nexo, servindo só para preencher
um vazio de criatividade porque se alguém
me tem pedido para escrever qualquer coisa eu não
seria capaz, e aterrorizado, dei comigo a desfiar o rosário dos títulos dos
livros que não escrevi, e aí veio-me em mente um novo título para um romance sobre uma Mulher
que espera – as Mulheres esperam sempre qualquer coisa -, que seria “Tu Ulisses
ou Tolices”, tendo como subtítulos “Mas foi Penélope a heroína” e “História da
espera de Maria da Pena Lopes”,
personagem inventada que habitava as Berlengas com um velho cego, um
Filho inerme e um cão triste, à janela a remendar as redes de pescadores de peixes e crustáceos que, sedentos de carne
fresca, a assediavam, enquanto o Marido não descobria a maneira de se libertar
de São Bento porque tropeçava em tolices que se sucediam àquelas que ele
próprio debitava num crescendo diabólico em carrossel que lhe impedia a
liberdade, tudo tão inútil como o meu joguinho com os números da madrugada de
16. No fim cheguei à conclusão que o único romance que eu estaria em condições
para escrever seria um sem título, com todos os títulos possíveis mas
descartados a cobrir toda a capa, e como nunca cairia na banalidade de escrever
nada que começasse por “Era uma vez…” começaria inteligentemente com “Ponto
Final”, o que me permitiria deixar todas as páginas seguintes em branco e
poupar o leitor a mais uma desilusão literária como tantas que andam por aí,
que seriam muito mais úteis se seguissem este meu figurino.
Tenho sorte porque estou a ler um livro útil e indispensável, “A
Rebelião das Massas”, de Ortega y Gasset, cuja primeira edição data de 1930. O
homem era de uma inteligência fulgurante e de uma presciência assustadora, como
vos dei conta no meu e-mail da semana passada, permitindo-me repetir aqui
quanto então escrevi:
- Lido no prólogo
escrito em 1937 por Ortega Y Gasset para a edição da sua obra “A Rebelião das
Massas”, de 1930, permitindo-me eu o desabafo “Gaita que o homem era
bruxo!”:
“Antes podia-se arejar a
atmosfera confinada de um país abrindo as janelas que dão para o outro. Mas
agora não serve de nada este expediente, porque no outro país a atmosfera é tão
irrespirável como no nosso.”
“…impõe-se
necessariamente a probabilidade de um Estado geral europeu. A ocasião que leve
de súbito a bom termo o processo pode ser uma qualquer: por exemplo, o rabicho
de um chinês que se assome nos Urais ou um safanão do grande magma islâmico.”
Só que, apesar, ou
por causa, da sua inteligência e facilidade de explicar os fenómenos nascentes
na sua época (entre as duas guerras), as duvidosas, para não dizer perigosas,
ideias que lançou encontraram terreno fértil naqueles que, pretendendo incluir
uma minoria predestinada a dominar a massa de “incultos” que não compreendiam o
“maître à penser” e, como tal, seres
inferiores, o que, a terem vingado, nos teria mantido nos séculos XVIII e XIX,
tempos durante os quais mandava quem
tinha de mandar e obedecia quem tinha de obedecer, pântano pregado ao longo da obra como
salvador, usando de todos os subterfúgios semânticos para não o parecer. Ortega
y Gasset é extraordinariamente convincente a impingir-nos que o que ele prega é
sacrossanto, mas que cada um é livre de não o acreditar nem seguir; pena que
essa nossa rebelião nos leve à desgraça e se cairmos nas ratoeiras que ele nos
revela a culpa é nossa, senão vejamos:
“ A multidão, de
repente, tornou-se visível, instalou-se nos primeiros lugares da plateia da
sociedade. Dantes, se existia, passava despercebida, ocupava o fundo do cenário
social; agora passou para a boca da cena, é ela a personagem principal. Já não
há protagonistas: só há coro.”
“ Quer-se que o homem
médio seja senhor. Então não se estranhe que actue por si e ante si, que
reclame todos os prazeres, que imponha decidido a sua vontade, que se negue a
toda a servidão, que não siga ninguém docilmente, que cuide da sua pessoa e dos
seus ócios, que se esmere no vestuário: são alguns dos atributos perenes que
acompanham a consciência de potestade. Hoje vemos que se encontram no homem
médio, na massa.”
“ O poder público sempre
foi assim quando exercido pelas massas: omnipotente e efémero. O homem-massa é
o homem cuja vida carece de projecto e anda à deriva. Por isso não constrói
nada, mesmo que as suas possibilidades, os seus poderes, sejam enormes.”
“ Os privilégios da
nobreza não são originariamente concessões ou favores, mas, pelo contrário, são
conquistas. E, em princípio, a sua manutenção pressupõe que o privilegiado
seria capaz de conquistar em qualquer momento, se fosse necessário e alguém
lhas disputasse. Os direitos privados ou privilégios não são, pois, posse
passiva e simples gozo, antes representam o perfil aonde chega o esforço da
pessoa. Por outro lado, os direitos comuns, como os « do homem e do cidadão», são propriedade passiva,
usufruto e benefício puro, dom generoso do destino com que todo o homem se
encontra, e que não corresponde a nenhum esforço, a não ser o de respirar e
evitar a demência. Eu diria, pois, que o direito impessoal tem-se e o pessoal
sustém-se.”
“ Por outro lado, é
ilusório pensar que o homem médio vigente, por muito que se tenha elevado o seu
nível vital em comparação com o de outros tempos, vai poder reger por si mesmo
o processo de civilização. Digo processo, já não progresso. O simples processo
de manter a civilização actual é superlativamente complexo e requer subtilezas
incalculáveis. Mal pode governá-lo este homem médio que aprendeu a usar muitos
aparelhos de civilização, mas que se caracteriza por ignorar de raiz os
próprios princípios da civilização.”
Poderia continuar a
citar o livro, enchendo páginas e páginas, mas penso que esta pequena amostra chegue para
vos dizer o que queria dizer: que o
filosofo madrileno, que foi o divulgador
de um certo pensamento aristocrático que ainda hoje prevalece e talvez
tenha agora, com tudo o que se passa à nossa volta, sofrido um recrudescimento
que, mesmo que se possa tentar compreender, não se pode aceitar, não podendo o autor continuar a
ser o seu curador através dos seus escritos que têm, por isso,
de ser lidos com espírito crítico, muito crítico mesmo, para não termos de ir para um céu que não desejamos.
Talvez por estar a
ler Ortega y Gasset reparei que os seus livros, junto com outros do Papa
Francisco, de Bento XVI, de Irena Sganovska, de Javier Echevarria, de Francisco
Fernández-Carvajal, de Frei Luis Granada, mas sobretudo de Jesus Herrero, os
quais se dedicam à crítica e comentário dos livros de Gasset, mas também
àqueles de Torga e de Sebastião da Gama, com um incursão negativa por Saramago,
estão nas montras daquela loja de santinhos, como lhe chamo eu, há 40 anos na
esquina da Marquês de Tomar com a Barbosa du Bocage, junto com dezenas e
dezenas de artigos religiosos, imagens do São Expedito ao Santo Padre Cruz de
Alcochete, estatuetas de todos os santos conhecidos, do Menino Jesus de Praga
ao Santo Padre Pio de Pietralcina, redomas
protegendo taumaturgos vários, crucifixos, taos, terços, presépios e
outros objecto de fé para crianças, tudo
recortado a laser em contraplacado fininho, velas e círios, registos todos feitos
à mão - 110 euros o mais caro -, tudo isto à volta de uma fotografia, brinde de
12 tipo passe, um pouco descolorida, de
um Senhor bonito e bem posto que foi proprietário do estabelecimento até 1996,
ano da sua morte com 77 anos, passando a gerência à sua Viúva, a Senhora Maria,
hoje com 85 anos, que me disse que a morte do marido foi como se lhe tivessem
tirado o ar, e à Fátinha, Filha do casal,
que me contou, fixando-me com aqueles olhos lindos que tem, que o Pai era Doutor e foi
Professor da Escola Machado de Castro, e que tem
um Irmão também ele Doutor, mas advogado.
São estas duas
Senhoras as curadoras das poucas almas da Freguesia das Avenidas Novas que
continuam a frequentar este templo do passado que, mesmo assim sendo, é
importante para o presente porque é indispensável preservar tudo como elas o fazem
numa loja que não pode morrer embora não venda nada de útil, convidando eu os leitores a visitá-lo: entrem
com curiosidade crítica e, vá lá, mesmo mórbida, porque sairão com algum
pequeno tesouro que lá encontrem. Desses tesouros sobressaem os citados registos que,
votados à adoração dos santos, são pequenos altares ou ex-votos que, para as
proprietárias da loja e para aqueles poucos que talvez os comprem, são também
espelhos-relicários da sua fé. Chamei a
atenção da Fátinha para o facto de um registo de Santo António ter a menção
“Sto. António de Pádua”, o que visivelmente a incomodou, e a mim me fez
arrepender mil vezes o reparo, tendo-me dito que era um lapso da senhora que os faz e que
iria reclamar o imperdoável erro. Tive a tentação de comprar uma tabuinha com
um anjinho da guarda papudo com asas e tudo que tinha escrito por baixo:
Anjo da Guarda
Minha companhia
Guarda a minha alma
De noite e de dia.
No fim limitei-me a
adquirir os santinhos que compõem a imagem de hoje, um português que não é
santo (Cruz), um italiano santo de há pouco (Pio), e um luso-italiano santo de
há muito (António). Comprei ainda outro, S. João de Brito com dois africanos
semi-nus ajoelhados perante ele, com a seguinte legenda: “Quero mais os matos
do Maduré que os Paços do Rei de Portugal”. Daqui em diante passarei a dizer a
Loja das Santinhas.
Lembrei-me agora que
o nosso PR levou como oferta ao Papa Francisco, na sua primeira viagem ao
estrangeiro, para além de paramentos litúrgicos desenhados por Siza Vieira, um
registo de Sto. António que, pertencendo-lhe, fazia parte da decoração da sua
casa. Marcelo Rebelo de Sousa, curador da fé através de um grande Santo adorado, e
disputado, por duas Nações. Tenho de passar a curar-me com mais atenção,
dispensando os serviços de curadores externos, sempre com tendência para curandeiros.
Abraço.
Lisboa, 24 de Março de 2016
Octávio Santos
TOP!
ResponderEliminarTOP = Tu Octávio Parvo!
EliminarTAP = Tu Anónimo(a)Provocador(a)!
Caro Octávio,
ResponderEliminarDe regresso à terra aterrei nesta crónica, cuja parte final me transportou à infância e àquela oração de criança:
"Menino Jesus
Vamos deitar
Esperanças em Deus
Nos há-de salvar"
Por outro lado, só mesmo este autor para nos descrever de forma tão perfeita, esta imagem parada no tempo.
Um Abraço
AeM
Caros AeM,
EliminarMuito obrigado pelo elogio mas o que me interessa é descobri-los e acabam de me dar uma pista, que foi a de aterragem. Como AeM não descobri nada, mas como A&M a coisa muda de figura; ou vêm do Texas onde a A&M é a mais antiga universidade, ou da Califórnia, Santa Mónica, onde a A&M Records, que produziu Cat Stevens, Joan Baez, Bryan Adams, Sting, Supertramp e Liza Minelli, entre outros, se tornou Polydor e agora Verve Records.Um dia chego lá, olá se chego.
Um abraço
Octávio