A imagem já a estão
a ver aqui a encabeçar esta crónica nº 100 e dizem que uma imagem vale por mil
palavras, mas não neste caso porque me veio a gana de contar-vos tudo e então
foi assim - e não acrescento “ prontos” por temer que o fim esteja longe -,
estava eu a olhar para uma natureza morta do Goya numa exposição de pintura
espanhola no Museu das Janelas Verdes, que representava uma mesa rústica com
tudo em cima, como nozes e avelãs, rebuçados, um cesto com um pano de cozinha
com ervas e ramos de cheiro, talheres oxidados, barros, faianças e vidros, umas
cascas de caracóis e uns escaravelhos secos, e até um coelho morto. Com esta na
cabeça calhei ver em casa uma caixa de madeira daquelas para uma só garrafa de
Vinho do Porto, gravada a fogo com o nome do produtor, James R. Dow, levei-a ao
Sr. Agostinho na Rua do Lumiar, dei-lhe as minhas instruções, e dois dias
depois fui lá buscá-la transformada em mesa - não me deve nada, foi tão pouco,
disse-me ele – que passou a ser a base daquela que seria a minha natureza morta
em 3D, só não o sendo porque o Bernardo me deu a ideia de lhe introduzir uma
planta viva num vaso com terra e tudo, hera trepadeira que tenho agora de regar
todos os dias com uma colher de chá.
E aqui começa o
relato chato das diversas fases da “criação da obra prima”, e o rol de todas as
peças que a compõem: Fui a um dos 50 chineses das Avenidas Novas e comprei uma tela
de 60x40, e ao ferrageiro por baixo da minha casa (nem este nem o chinês
aceitaram sponsorizar a obra pelo que
não cito nomes) vindo de lá com um tubo de Pattex – Não mais pregos (estes
pagaram); dividi a tela no sentido horizontal – 23 cm para baixo e 17 para cima
-, pintei a parte inferior com tinta acrílica “amarelo vermelho de Nápoles”
comprada no El Corte, colando-lhe a mesa em baixo à direita. A parte superior
foi forrada a seda vermelha com flores-de-lis douradas, tiras de uma minha gravata
Guy Laroche comprada há mais de 30 anos no freeshop
do aeroporto de Viena. Começou então a minha peregrinação à Artspot, na Rua
Alexandre Ferreira, paralela à Rua do Lumiar, aquela dos Inválidos do Comércio,
e lá adquiri o que consta do rol abaixo:
Tabuinhas e perfis
de diversas medidas, 4 molduras, uma cruz, duas cantoneiras, uma roda de leme e
uma âncora e quatro rodelinhas furadas, tudo isto em madeira; 50 telhas, uma
meia cafeteira, uma moldura, um violino e dois livros, estes em gesso; uma
moldurinha redonda, uma bandeja, duas chaves e uma placa gravada “Feito à mão”,
em metal, e ainda um espelho oval, um camafeu em resina, diversas tintas
acrílicas, colorantes para madeira e diluentes. Munido de todo este arsenal,
fui fazendo por esta ordem:
Pintei um perfil em
ouro velho e colei-o a delimitar as duas zonas da parede de fundo; com umas tabuinhas
tintas cor panga-panga (agora diz-se wengué)
construí o soalho, com outras o tecto com barrotes à vista, tudo bem colado e
pregado não vá a casa cair, e arquivemos já a parte de cima, aquela forrada a seda,
que tem penduradas três molduras em ouro velho cada um com o seu quadro - “La Fornarina” de Rafael, a Guilhermina
Suggia deste blogue, e um outro que não sei de quem é mas que representa um batoteiro a jogar as cartas com uma Senhora (sueca?
refiro-me a ela, não ao jogo), uma moldura oval em estanho polícromado com o espelho, a cruz
de madeira, meio ouro meio estanho, com um crucifixo colado em cima, este
encontrado nas minhas coisas búlgaras, e uma prateleira apoiada em duas cantoneiras
(tudo wengué), a qual suporta 3
naperons de linho e renda (depois explico quando descrever o cadeirão), uma
concha de madrepérola com dentro um cestinho originário da Colômbia, que serve
de ninho a um ovo de passarinho apanhado intacto numa rua de Lisboa, debaixo de
uma árvore, estando ali como metáfora do seu próprio duplo milagre, mais dois castiçais em estanho com
velas, tudo encontrado nos acessórios de aniversário do El Corte, velas que só
acendi para a fotografia porque queimam o tecto e lá se vai a obra para o
maneta, mas talvez o faça um dia durante
um happening queimando tudo em
directo para o You Tube, que
receberia muitos likes, quanto mais
não fosse dos milhares de pirómanos à solta neste país.
Aqui obrigo-me a
revelar os outros fornecedores, porque a sponsorização
assim o exige, com a respectiva lista de bens fornecidos:
-Do Hospital da
Bonecas, na Praça da Figueira, 7, trouxe: um cadeirão em madeira, um gato de
louça, um cestinho de verga, uma malga de faiança polícroma e dois pratos
metálicos com os respectivos talheres.
-No Horto do Campo
Grande, em São Pedro de Sintra, encontrei um vaso em faiança, o seu prato
recolhe água, em plástico, um vaso com uma hera anã e uma bobeche de vidro
transparente com filete dourado.
Disto isto passemos à
mesa que vamos dividir em parte de cima e parte de baixo. A parte de cima foi
coberta com uma toalha feita de um pano bordado que uma amiga
brasileira, já falecida, nos ofereceu em Sófia nos anos 80 do século passado.
Sobre a mesa temos um vaso de faiança, comprado branco no El Corte e decorado
por mim, a azul e ouro velho, com motivos vitícolas copiados de uma chávena de
café “Made in USSR”, vaso que contém um ramo de flores secas naturais que uma
florista do Mercado do Saldanha me ofereceu, mais uma flor de orquídea seca em
casa. À volta do vaso temos, da direita para a esquerda, a meia cafeteira e uma
caneca de estanho, sendo esta última o primeiro dedal da Manuela quando a Mãe
começou a ensiná-la a costurar, com uma asa que lhe inventei, o cesto de verga
forrado com um tecido aos quadradinhos tirado de uma embalagem de camembert, com pão verdadeiro feito em casa,
4 rebuçados sendo 2 do Dr. Bayard, um pratinho de metal, com um naperon de renda,
com um bolo que vinha na “Galette des Rois” que comprámos este Natal na
L’Éclair da Av. Duque d’Ávila, um outro pratinho idêntico, vazio, com os
talheres ao lado, uma malga polícroma também vazia (que se pode encher de
quinoa ou bagas goji), uma estrela-do-mar, uma casca de mexilhão e outras
conchinhas, bivalves e búzios, uma moldura, azul e ouro, com uma “Cabeça de
Velho” de Dürer, alternativa ao rinoceronte por ele imortalizado, que não era
mais que aquele que D. Manuel I mandou ao Papa Leão X, e acabou por morrer
afogado ao largo de Génova, porque a sua gravura é horizontal e o Velho é
vertical (os velhos são quase sempre verticais), um prato de vidro (a bobeche)
com laranjas bonsai e kunkuates secos, uma garrafa de Fernet-Branca e outra
forrada a palha, que contém essência de alfazema “Spiritual Sky”, nunca aberta,
oferecida em Sófia por uma outra amiga brasileira, esta felizmente ainda viva.
Na parede sobre a mesa está pendurada a moldura metálica com o camafeu. E vamos
para baixo da mesa.
E aí vemos, levantando
a borda da toalha, da direita para a esquerda: um atado de lenha, uma bilha
(roubada ao presépio), uma pinha, uma bandeja metálica com romãs anãs secas, da
nossa varanda, um pedaço de madeira fóssil apanhado na praia, uma lasca de
xisto alentejano, uma roda de leme e uma âncora, um caixote feito de uma
embalagem de camembert, com frutos
secos de roseira brava do Jardim da Gulbenkian, duas telhas que sobraram do
telhado, um ramo seco de malvas e pinhas e, por fim, um balde de
madeira (também roubado ao presépio) com um botão de rosa seco.
Acabada a mesa,
temos no espaço livre ao seu lado, na parede, um Sto. António com o Menino em,
digamos, azulejo, e duas chaves penduradas. A cobrir parte do chão um tapete
feito com uma minha outra velha gravata, esta de Roma, “Antiche Seterie
Fiorentine”, tendo como trama e franjas um pano subtraído de uma das gavetas da
cozinha. À esquerda a invenção do Bernardo, ou seja, o vaso com a hera,
chamando a atenção para o seu bordo forrado com uma parte do mesmo pano de
cozinha do tapete e para a sua decoração em losango, pedaço que sobrou do
original bordado da toalha da mesa. No chão, um violino e o seu arco, um livro
de pautas musicais, um gato que brinca com um novelo de lã vermelho e um livro
aberto, vermelho e ouro, que ficou esquecido junto a uma das pernas do cadeirão
que, por si só merece um capítulo especial.
Cadeirão que comprei
forrado e estofado à porca janota, como diria a Dona Lilita do Café Correia de
Vila do Bispo. Atirei-me a ele, arranquei tudo, forrei a parte exterior
com o avesso da minha gravata Guy
Laroche, recheado de discos de
microfibra de algodão daqueles com que as Senhoras limpam tudo o que lhes
apetece pôr na cara; para o assento e as costas, que sofreram o mesmo
tratamento, enchimento de algodão e tudo, usei o tecido que passo a descrever.
Nos casamentos em Itália, e agora também em Portugal, é costume oferecer-se aos
convidados, e também aos amigos e conhecidos que contribuem para a “Lista de
Casamento”, as chamadas bomboniere,
que não passam de uma pequena lembrança para assinalar o evento. Quando a minha
colega da Embaixada em Roma, Berenice Rossini, se casou com um tal Ferdinando –
eu gozava com ela por casar com um gerúndio -, a bomboneira que recebemos foi
um saquinho de linho cheio de amêndoas de Sulmona, com uma renda e o monograma “F B”
bordado, e foi desse saquinho que nasceu todo o estofo da cadeira, assento e
costas, mas também os 3 naperons da prateleira e aquele do prato do bolo.
E agora só faltam
poucas coisas, a saber: os óculos que a Senhora da casa deixou na cadeira,
feitos de fio eléctrico, a malha que estava a tricotar, que é um pedacinho de
umas calças de pijama velhas com dois alfinetes cabeçudos subtraídos da caixa da
costura, e um haltere de 20 kg, escondido atrás do vaso com a intenção de, juntamente
com a âncora e a roda do leme, lançar a dúvida sobre se a dona da casa será mesmo uma
velha Senhora ou um marinheiro reformado.
O remate final são
as telhas, todas pintadas à mão com diversas misturas de acrílico amarelo,
vermelho e branco, umas ervas que entretanto passaram do ramo de Domingo de
Ramos para o telhado, e a placa gravada “Feito à mão”, em baixo à esquerda. Um
dia terá uma moldura iluminada, uma abóboras no telhado em homenagem ao romance
homónimo de Mestre Aquilino Ribeiro, ficando os ninhos de andorinha para mais
tarde, andando eu neste momento a tentar capturar uma aranha para que, caso
aceite residir na casa, me teça uma teia debaixo da mesa.
Abraço.
Lisboa, 28 de Abril
de 2016
Octávio Santos
Caro Autor,
ResponderEliminarComo se trata da 100ª crónica, e não desejando perder a oportunidade de mais uma vez comentar neste interessante blogue, pelo receio de uma eventual espécie de "greve", venho apenas dizer que gostaria de ter à vontade 150 euros (mas neste momento estou em défice crónico) para que a peça que está na fotografia estivesse num local físico (em Portugal, claro) para eu a poder olhar ao vivo de vez em quando. Em alternativa, poderia ser um print da fotografia que eu pudesse ir buscar a um local em Lisboa, não muito afastado do Corte Inglês. DFC
Cara Deolinda,
EliminarA “obra de arte” não está à venda e a generosa oferta, tal como acontece com os criadores de suínos, não cobre as despesas. Um dia, quem sabe, talvez a vá admirar num museu como obra póstuma de um artista incompreendido. Não desespere porque, mais tarde ou mais cedo, vai ter o seu print.
Abraço
Octávio
Caro Ostinato,
ResponderEliminarPois eu subiria a parada para 300€, não fosse esta malfadada crise financeira que a todos (excepto aos do costume)parece a assolar.
AeM
Caro(s) AeM (esse "eu" tirou-me certezas),
EliminarTemos leilão? Obrigado por levantar(em) a parada da anterior licitante mas ainda é pouco (uma simples questão de zeros). Quanto aos do costume, o leque alarga-se ultrapassando os palácios do poder, os antros da finança, as sociedades de advogados e de consultores e os estádios dos grandes da bola, chegando agora, pasme(m), à Tapadinha e ao Estádio do Mar.
Abraço
Octávio