Dizem os homens íntegros
que não têm preço, e que em nenhuma situação se deixariam comprar, não se
desviando um milímetro daquele que acreditam ser o caminho da rectidão, e eu,
lembrando-me de figuras, e foram tantas, que tudo sacrificaram por estes
princípios, não posso não estar mais de acordo, embora sabendo ser alvo da risota discreta daqueles
figurões que, tendo percebido a
estupidez e inutilidade desta atitude, estão a tratar da sua “salvação” com
métodos muito mais fáceis, simples e eficazes, sem se curarem minimamente dos
danados que semeiam pela sua estrada, ou sejam, quase todos nós, aqueles para
quem um Jota continua a ser uma
consoante do alfabeto latino, e depois do filme, uma zona de Chelas, e não o
produto de uma qualquer escola
partidária (madrassas para engodos e trapaças), e que Ovar é a cidade de origem
das varinas e não um depósito de sucatas metálicas e humanas onde varas de
porcos oficialmente certificados continuam a refocilar na certeza da impunidade ou da
prescrição, armando em chico-espertos, que é o que está a dar na Costa das
Negociatas.
Não tendo a
pretensão de fazer parte desses justos, lembro-me que uma vez, já lá vão quase
40 anos, estando eu em Sófia a exercer funções consulares, se me apresentou uma
jovem que estudava na Universidade Kliment Ohrisdsky na capital búlgara, a
expor-me o seu problema para o qual me pedia solução. Neta e filha de portugueses
residentes em Moçambique e aí nascida, tendo, após a independência, por
imposição de uma lei que não admitia o estatuto de dupla nacionalidade, optado,
seguramente por questões ideológicas, por aquela moçambicana, sendo por isso
titular de um passaporte do novel país africano. Em Sófia casara entretanto com
um cidadão búlgaro e, dado que também a Bulgária não admitia tal estatuto,
escolheu, desta vez por amor, a nacionalidade do marido, perdendo o passaporte
moçambicano e adquirindo aquele búlgaro. Acontece que, tal como as convicções
ideológicas, o amor não dura para sempre, e a nossa ex-lusa e ex-moçambicana se
encontrava, por divórcio, também ex-búlgara já que as autoridades do país das
rosas, sempre no respeito de uma qualquer lei, lhe retiraram o passaporte que
adquirira pelo casamento. Em resumo, a jovem veio à Secção Consular porque se encontrava na
condição de apátrida, o que lhe abria um futuro pouco risonho, tendo por isso
começado a ter problemas com a bolsa de estudo, e desejava rumar a Portugal
para recomeçar a sua vida. Expliquei-lhe tudo o que estava previsto na lei
portuguesa, os documentos que teria de me apresentar para que, depois de
enviados para Lisboa, ser organizado um processo que seria avaliado para uma
posterior decisão que poderia eventualmente devolver-lhe a nacionalidade
portuguesa. Percebendo quanto tempo tudo isso poderia levar, a jovem disse-me
que o que queria era sair imediatamente do pesadelo em que se metera e deixar a
Bulgária o mais rapidamente possível, começando a chorar copiosamente. Mesmo
vinda do país de Cahora Bassa, provou-me que a maior força hidráulica conhecida
é uma lágrima de mulher e aí “vendi-me”. Abri o cofre, tirei um passaporte,
preenchi-o em seu nome, assinei-o, pus-lhe o selo branco e entreguei-lho contra
o pagamento dos emolumentos previstos na Tabela Oficial dos Actos Consulares,
porque sou intransigente quando se trata de cumprir a lei. E conheci o meu
preço, que foi aquele da solidariedade humana, já que não gosto da palavra
compaixão que sugere sempre a ideia de uma acção de alguém que está bem, e tem
poder, em favor de alguém que está mal e depende desse poder.
Preço que
recentemente voltei a avaliar e conhecer, desta vez simplesmente por amor. Todos
sabem que o meu Irmão pequenino nos deixou no passado dia 8 da Maio, cinco dias
após ter completado 63 anos, dia em que teve os Netos a apagar-lhe as velas em
dois Fofos de Belas, um nas mãos do Tomás e outro nas do António, e todos nós a
cantar-lhe com um nó na garganta o parabéns a você. Repousa agora, a seu pedido,
sobre o local onde há dois anos sepultou o Lidador, seu amado garanhão, no
campo que está ao lado esquerdo do sobreiro caído, que é a imagem deste texto.
Pois, o Vasco, na
sua imensa fé em Deus e nos homens, quando me pôs ao corrente da sua gravíssima
condição de saúde, avisou-me logo que, estando nas mãos do Serviço Nacional de
Saúde, no seu caso no IPO Francisco Gentil de Lisboa, estava seguro que iria
receber os melhores tratamentos hoje existentes no mundo, e os melhores
cuidados da parte de todos quanto trabalham naquele hospital especializado, e
que, com a ajuda de Deus, teríamos que o suportar ainda por muitos e bons
anos. Comecei então a estar ao lado do
Vasco todas as vezes que ia ao IPO para as sessões de quimioterapia, e nessa
altura escrevi o texto “Venenos - bons, maus, vingadores, escondidos e outros”,
editado em 23 de Janeiro. Durante a primeira sessão o Vasco perguntou-me se não
seria justo escrever um texto sobre a excelência dos serviços, médicos e
outros, do IPO, e sobre a competência e disponibilidade de todos aqueles que
nele exercem a sua actividade.
Eu, que tenho
sempre as antenas, áudio, vídeo e mesmo aquelas subliminares, em acção na sua
máxima potência, e que tinha já visto coisas que eram opostas àquilo que ao
Vasco parecia, pus uma surdina a todas essas minhas convicções baseadas na
simples observação de factos, e escrevi o texto “IPO…hIPO…hurrah!!”, editado no
dia 13 de Fevereiro, que creio terem todos percebido ser forçado e
despudoradamente de parte, mas o preço recebido e a satisfação proporcionada justificaram quanto fiz. Preço
que, por amor, recebi e continuarei a receber enquanto viva, não desperdiçando
um cêntimo dos exemplos e ensinamentos que o Vasco me legou, e não só a mim.
E do preço passamos
à liberdade. Posso eu, que desde sempre escrevi aquilo que me pareceu justo
escrever, desde que tal correspondesse à verdade e servisse para denunciar o
que está mal segundo a ética das pessoas de bem, pôr preto no branco, hoje e
agora, tudo o que de reprovável observei, ouvi e sobretudo vi sofrer a quem
estava mal, no IPO, de forma insuportável, e, em escala muito menor mas mesmo
assim reprovável, no Hospital da Cruz Vermelha? A resposta é não, porque, assim
como reconheço ter um preço, também sei pôr limites à minha liberdade,
calando-me desta vez a custo, arriscando trair a memória do meu Irmão
pequenino, em nome da tranquilidade de todos os que frequentam, doentes ou
agentes de saúde, os acima citados hospitais, e porventura outros.
Assim, como decidi,
por um acto de auto censura, não ofender a sensibilidade de outrem, deixo-vos
duas coisas que exaltam a memória daquele que nos deixou:
- A peça que o
nosso Amigo Bruno Caseirão quis escrever, lembrando o Vasco, na revista Equitação, e o vídeo que ilustra esta justa homenagem, prova de quanto ele era apreciado no universo
encantado do Cavalo Puro Sangue Lusitano.
- Uma parte do
texto que me senti de escrever sobre o Vasco, destinado a ser lido durante a
Missa de Corpo Presente, e ele aí está:
“Escrevi umas
coisas para dizer hoje aqui junto do corpo do meu Irmão pequenino, porque me
recordo de, diante dele e da Maria Rosa - e de mais umas centenas de pessoas –
ter embatucado as palavras que deveria dizer a fechar uma feira na Cidade da
Praia, e ter feito um silêncio que, se foi de 30 segundos me pareceu uma hora,
acabando por concluir com uma banalidade aquilo que não disse, envergonhado
como um cão batido.
E foi por isso que,
desta vez, escrevi tudo direitinho para não passar por outra vergonha diante do
Vasco. E a propósito dos 30 segundos que me pareceram uma hora, repito o que o
Vasco me disse um destes últimos dias que passámos juntos: tendo-me perguntado
que horas eram para saber quanto tempo faltava para lhe ministrarem uma das
drogas que lhe aliviavam momentaneamente as dores, e tendo eu respondido que só
faltava uma hora, replicou: - Uma hora é tanto para quem conta cada segundo!
Tenho esta pecha de
citar autores importantes, talvez para sentir, na imensa e estúpida vaidade dos
homens, que posso fazer parte da estirpe, e hoje vem-me em mente o que
Shakespeare pôs na boca de Marco António no funeral de Júlio César, para o contrariar
quando diz aos romanos “Estou aqui para
enterrar César, não para o elogiar”, porque eu estou aqui para elogiar o Vasco e
não para enterrá-lo. Mas também para
concordar quando diz “O mal que os homens fazem sobrevive-lhes; o bem é muitas
vezes enterrado com os seus ossos”, embora eu aqui esteja suplicando para que
desta vez não seja verdade, com a certeza de ter do meu lado todos aqueles que
lhe quiseram bem em vida e que nunca esquecerão o bem que o Vasco espalhou à
sua volta.
No Domingo passado
fui ao seu santuário das Valadas encontrar-me com os meus sobrinhos Mafalda e
David, e aquele sobreiro enorme, abatido atrás da casa pelo temporal, com as
raízes ao Sol e as folhas a ficarem secas, representou-me o meu Irmão que, como
ele, tanto produziu em vida de útil e valioso, ali à espera que lhe cortem os
ramos secos para lenha. Resta-me a certeza que a força que ele transmitiu à
Maria Rosa e aos seus Filhos, faça com que os ramos cortados sejam úteis para
aquecer e sobretudo iluminar quantos a eles se aproximem.
A última vez que vi
o Vasco feliz - sem contar com o extraordinário encontro que teve com a minha
Filha Margarida algumas horas antes de nos deixar, relâmpago em céu sereno -
foi no passado dia 22 de Março nas Valadas quando o seu “mais novo amigo de
infância” o visitou, a si, à sua Família e aos seus cavalos, acompanhado de
Dona Lectícia. Pois esse amigo, o grande escritor brasileiro José Paulo Cavalcanti
Filho, escreveu-me da sua Recife:
Queridíssimo Octávio,
Há um conto de Cortazar em que homem e mulher, que nunca se
viram, acabam se apaixonando. Se comunicavam por grafites escritos nos muros.
Até que ele um dia escreveu " dói também em mim ", e desapareceu. É o
que me ocorre, agora. Dói também em mim. Em nós, Maria Lecticia inclusive. Dor enorme, amigo. Pode
acreditar. Aquele dia foi muito especial. Tivemos enorme prazer em compartilhar
da alegria familiar. Dói em mim, Octávio. Como dói. Mas segue a vida. Abraços,
José Paulo.”
Termino, voltando novamente
à tragédia de Shakespeare, citando a parte final do discurso de Marco António:
- Desculpem-me; o meu coração jaz na urna com Vasco e devo calar-me até que ele
volte para o meu peito.
Tenho saudades.
Pronto!
Lisboa, 29 de Maio
de 2014
Octávio Santos
*Gostaria que
relessem a última carta que escrevi ao Vasco, a qual está no texto “Escrita
criativa de um menino em liberdade condicional com tempo para escrever uma
carta de amor, não sabendo ainda se terá coragem para a remeter ao
destinatário”, editado no dia 17 de Abril.
Muito especial é o texto desta quinta-feira. Agradeço ao autor a leitura que me proporcionou desta vez (DFC)
ResponderEliminar