quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

O direito à imprecisão

Estava quase a cair na tentação de, por inércia, preguiça, outras afazeres ou falta de tema, falhar pela primeira vez o meu encontro de quinta feira com os meus leitores.  Felizmente que em Portugal basta pôr o nariz fora dos lençóis, da janela ou da porta de casa, ou dentro de jornais, revistas, sites  ou televisões, para que te venha vontade de dar a tua opinião, nem que seja para deitar cá para fora coisas que são facilmente desmentidas. E eu, que supliquei  “o inalienável direito à brincadeira” em nota de rodapé na página 98 do meu livro “Moínho de Vento, 23”,  invoco aqui  o direito à imprecisão; isto é, basta-me escrever o que bem me apetece, sem garantir a precisão do que afirmo, e os outros que se dêem ao trabalho de me desmentir se for caso disso.  Fácil, não ?
 
Habituado, como é sabido, a escrever para taxistas e barbeiros, senti-me hoje confortado com a companhia do Secretário de Estado da Juventude e Desportos, que alguém acusou de “comportamentos e frases ao nível de meras conversas de café”, porque afirmou “que o que se passou no Meco foram actos ilícitos”.  Por ter dito uma mais que possível verdade desceu aos “baixos” do Expresso, enquanto que o Ministro-adjunto e do Desenvolvimento Regional subiu aos “altos” por uma quase certa mentira.
Disse-o, até diante de gente séria, e repito-o agora, que a desobediência é um dos motores que faz avançar este mundo. Serei impreciso, mas sinto-me útil já que a imprecisão é um dos motores que faz mover este país, dando ocupação a muita gente.
Imprecisão que fez com que jornalistas cuscos levassem a Christie’s a adiar sine die o leilão dos Mirós do BPN, já que prejudicaram os cofres da nação pelo ruído que fizeram, no dizer do Secretário de Estado da Cultura, e pelo alarido que provocaram, na opinião de um conceituado deputado do PSD.  Serei impreciso se afirmar que o Secretário de Estado da Cultura não a tem, por não ter percebido que os milhares de “mirónes” que viriam a Portugal admirar as obras do mestre catalão, em museu condigno, seriam mais lucrativos que o resultado do leilão ?
Sem as imprecisões com que os membros deste Governo nos têm mimoseado sobre os swaps, o spread, o deficit, as PPP’s, as nacionalizações,  as declarações externas do Ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros,  e fico-me por aqui para não fazer uma lista interminável que ninguém leria, o que é que restaria para discutir nas diversas e numerosas Comissões Parlamentares?  O desemprego, a nova vaga de emigração económica, a falência das famílias,  a tentativa de destruição do SNS, o miserável salário mínimo, os cortes de salários e pensões (as de sobrevivência só depois das eleições europeias), o estado da justiça, o caos do ensino ?
Sem as imprecisões dos árbitros e juízes de linha, o que fariam as dezenas de figuras públicas que todas as semanas, em todos os canais da televisão,  pública e privada, nos inundam por horas e horas com as suas doutas opiniões, horas que somadas representam mais tempo que aquelas de todos os jogos da semana juntos ?
Sem explorar as imprecisões das declarações das testemunhas, dos réus e dos ofendidos, os sofismas e subtilezas dos códigos, as vírgulas fora do sítio, os prazos não respeitados, as prescrições dilatoriamente provocadas, como é que os advogados teriam o seu ganha pão assegurado ?
Posso ser impreciso, mas causa-me espécie que na Alemanha tenham sido condenados corruptores, quando em Portugal os corruptos nem sequer foram beliscados. 1 P, 2P, submarino ao fundo, ou contrapartidas imprecisas ?
Serei impreciso se disser que um dos grandes travões do progresso desta nação,  temporariamente envergonhada é a corrupção que cresce em progressão geométrica, porque a impunidade é quase garantida ?
Se Ayrton Sena não tivesse sido impreciso naquela curva em Imola, ou os mecânicos de Maranello tivessem tudo afinadinho, não o teríamos ainda entre nós a subtrair a supremacia da Fórmula 1 a Michael Schumacher, cuja imprecisão na neve quase o levava para junto de Sena ?
Se as autoridades judiciais e investigadoras portuguesas tivessem usado de precisão, não teríamos junto de nós, e sobretudo das suas Famílias, a Maddie e o Rui Pedro ? E tantos outros !
Se não se tivessem dito tantas imprecisões sobre as armas químicas do Saddam Houssein, Durão Barroso estaria hoje em Bruxelas ? Quantos milhares de jovens norte americanos ainda  estariam vivos ? As primaveras  árabes teriam sido transformadas em inv(f)ernos ?
Estaríamos na situação em que nos encontramos se políticos, governos, bancos, fundos de investimento, agências de rating, impérios de consultoria, sociedades de advogados, etc. não nos impingissem diariamente imprecisões que só a eles próprios servem ?
Nixon não montou a operação Watergate com a necessária  precisão. Clinton não montou, com ou sem precisão, mas foi oralmente impreciso naquilo que contou à Hilary e ao seu país.  Hollande poderia ter sido “salvo” se não cometesse a imprecisão de usar sempre o mesmo tipo de sapatos; mudar de scooter ou de capacete não foi suficiente. O Presidente da República foi impreciso quando nos revelou o montante da sua reforma. O Vice-Primeiro Ministro e Ministro de Estado foi impreciso no uso da língua portuguesa e no significado que deu a certas palavras que todos sabemos o que querem dizer.
Muitos magistrados e investigadores italianos não foram  assassinados porque foram imprecisos na investigação e nas sentenças de casos judiciais que tinham como réus membros das diversas mafias transalpinas. Aqueles (muitos) que usaram de precisão, já cá não estão para se arrependerem de não terem sido imprecisos.
Por imprecisão de muitos, um jovem com um grave traumatismo craniano provocado por um acidente em Chaves, viajou 400 km de ambulância até ao primeiro hospital onde encontrou vaga: em Lisboa, no Santa Maria. Vou ser, por uma vez, preciso: ninguém vai ser considerado responsável.
Vou só repetir uma afirmação ouvida, a qual poderá ser imprecisa. A Oktober Fest é o evento mundial onde se bebe mais cerveja; o segundo é a Queima das Fitas em Coimbra.
Na segunda feira todos vimos no vergonhoso Prós e Contras,  cujo tema foi o escândalo das praxes académicas, um DUX de cabelo branco que estuda (?) na Universidade de Coimbra vai para 25 anos. Soube com um certo grau de imprecisão que os DUX Veteranorum são  estudantes crónicos que fazem de tudo menos estudar. Com que interesse ? Quem lhes paga ? Cúmulo da imprecisão: quem os sponsorisa ?  Os precisos, os sérios, os bem falantes , os cuidadosos, os professores que aconselham, parafraseando o Marquês de Pombal, a enterrar os mortos e a cuidar dos vivos, que se dêem ao trabalho de me desmentir. Com precisão sff!

Lisboa, 6 de Fevereiro de 2014
Octávio Santos