quinta-feira, 5 de junho de 2014

O Juvenil – Um jovem povo de esperança


Hoje seria tentador e fácil falar do “povo de suicidas”  de Unamuno, mas face a mais uma prova dada à tese de um dos poucos amigos de que Portugal se pode orgulhar para além da nossa única fronteira terrestre, basta-me aguardar curioso pela posição da Sra. D. Maria de Jesus Barroso para saber se está com o Pai ou com o Filho,  já que com o Espírito Santo parece que ninguém está, à parte o CR7 e a D. Inércia. Mas deixemos o que interessa e passemos ao que não interessa ou interessa a poucos. 

No meu livro “Moínho de Vento, 23” escrevi um pequeno texto intitulado “Os meus primeiro e último poemas”, em que falava do Suplemento Juvenil que o Diário de Lisboa publicou semanalmente, de 4 de Maio de 1957 a 8 de Setembro de 1970, num total de 690 edições. Acontece que, falando à minha cara amiga e ex-colega Cristina Góis Amorim do texto que eu tinha escrito para o Juvenil, citado naquele outro acima recordado, logo esta moveu o céu e a terra para o localizar com a finalidade de mo ler durante a festa surpresa que estava a organizar, na minha mais completa ignorância, para a minha despedida da AICEP, tendo combinado com o também meu caro amigo e ex-colega Vítor Quelhas, para que este, após a leitura do texto, falasse sobre o mesmo como pretexto para me desafiar a fazer um trabalho de pesquisa sobre o Juvenil, tendo em vista, publicando-o, dar o devido e merecido realce a um espaço que tanta influência teve na formação cívica, cultural, democrática e literária de toda uma geração. Missão impossível, porque tendo eu dito à Cristina que o título de tal texto era “Estrada branca e estada preta” quando na realidade era “Parábola do Amor”, lhe retirei - mea culpa, mea culpa, mea culpa – a satisfação de o encontrar no meio dos seus 690 números. Como se alguém, na ânsia de encetar um trabalho de costura, procurasse uma agulha num palheiro, quando o que tinha perdido era o dedal. Mesmo assim, durante a tal festa surpresa, que constituiu um dos momentos mais inesquecíveis da minha vida com tudo o que para mim representou, o Vítor, na sua dupla  veste de jornalista e de afirmado crítico literário e, como tal, ciente da importância que o Juvenil teve para os jovens que nele encontraram espaço para revelarem os seus dons para a escrita, muitos com talento, lá me lançou o citado desafio. 

Como alguns (poucos) sabem, quando alguém que eu respeito me pede uma coisa, esse pedido transforma-se em ordem, começando logo a trabalhar a sério para não desiludir o comitente e não me envergonhar. Descobri então que a Hemeroteca de Lisboa está encerrada sine-die, que a Biblioteca Nacional tem os exemplares do Diário de Lisboa arquivados sob vácuo, o que constitui impedimento da sua consulta, e que a Fundação Mário Soares tem na net à disposição de todos a digitalização de todo o Diário de Lisboa, isto é, dos seus 22.378 números publicados de 7 de Abril de 1921 a 30 de Novembro de 1990, de Joaquim Manso a António Ruella Ramos. Mas deixemo-nos de divagações e vamos ao que interessa. 

Após semanas de um trabalho de sapa intenso, queimando literalmente as pestanas sobre as digitalizações, na procura de meu texto, de duas visitas à FMS, e de outras navegações avulsas na net, descobri, para além do dito, coisas bem mais importantes que tiveram o condão de redobrar em mim a vontade e o fervor de levar o meu trabalho por diante. Senão vejam só:

- Que o Juvenil não era só Mário Castrim (Manuel Nunes da Fonseca), como afirma Nuno Rebocho, nem “uma escola de leitores, não de escritores” como disse Augusto Abelaira, nem “uma fábrica de castrinzinhos” como considerava Marcello Caetano, levando Castrim, que descreveu o Juvenil como “ a mais completa e duradoura experiência da sua vida” e, exagerando, “talvez a minha única obra”, a responder-lhe “antes castrinzinhos que castradozinhos”, porque o Juvenil era também Augusto Costa Dias, Manuel Salgueiro, Tossan (António Fernando dos Santos) e António Domingues. 

- E outros haviam sob pseudónimo, pois que, no seu primeiro número, o editorial denominado  “Jornal de Bordo I”, era  assinado Trote, que descobriremos quem é  (hei-de perguntar à Alice Vieira a próxima vez que a encontrar no El Corte Inglès), nele  se fazendo um elenco dos responsáveis do Juvenil, nomeando os pseudónimos que tomarão nas rubricas “Nos Mares do Sul – Aventuras do Capitão Fumaça e seus companheiros” e “ O Grande Detective Eusébio Pararraios”, que usarão estes espaços como tribunas para expor as suas teorias,  pensamentos, razões e possíveis curas para o que se passa nos mares do sul –Portugal? – onde é necessário ser um detective diplomado para abrir as portas à glória da liberdade, e são eles o Dr. Gedeão Sanches de Azevedo, Lidoro Brigalhadas, o Capitão Fumaça, Cabide & Cabidela, Vliça, Miudinho, Pararraios, Basílio Sopito, e ainda, o Cabeça de Atum e o Pote sim-Pote não.  Veremos se isto se confirma e se conseguiremos descobrir a quem correspondem os pseudónimos, começando pelo Trote. 

- Que li na “Rua dos Dias que Voam”, assinado Gin-tonic, que “Muitos jovens ali colocaram os seus primeiros poemas, os seus primeiros textos, os seus primeiros desenhos e fotografias. Muitos ficaram pelo anonimato, mas muitos outros, nisto e naquilo, tornaram-se gente conhecida”, e ainda que “Naquele tempo cinzento, o Juvenil foi, para uma boa parte daquela geração, o porta-aviões, o trampolim, a tarimba para outras aventuras, outros gostos, outros cenários”. E desses jovens passo a fazer uma lista por ordem alfabética, jurando que farei justiça aos omitidos, e serão muitos,  no trabalho que me proponho fazer, e ela aqui fica: 

Afonso Cautela, Alice Vieira (Alice Vassalo Pereira), Ana Lisboa, Antónia Gadanha, Cáceres Monteiro, Carlos Miguel, Daniel Sampaio, Diana Andringa, Domingos Lobo, Eduardo Prado Coelho, Hélder Pinto, Hélia Correia, Hugo Beja, João Bonifácio-Serra, Joaquim Benite, Joaquim Pessoa, Jorge Massada, Jorge Silva Melo, José Agostinho Baptista, José António Freire Antunes, José António Saraiva, José Jorge Letria, José Manuel Durão Barroso, José de Matos Cruz, José Pacheco Pereira, José Pedro Pereira, José Pereira da Costa, Luís Almeida Martins, Luís Filipe Castro Mendes, Luís Matoso, Luís Miranda da Rocha, Maria Helena Costa Dias, Maria Inácia Henriques, Maria Leonor Xavier, Mário Contumélias, Miguel Serras Pereira, Nelson de Matos, Nuno Júdice, Nuno Rebocho, Paulo Varela Gomes, Tito Lívio, Torquato da Luz e Vítor Oliveira Jorge. 

- Mais descobri que a jornalista Maria José Oliveira escreveu em 1988 uma tese monográfica sobre o Juvenil, intitulada “Suplemento Juvenil do Diário de Lisboa – Lugar de Ensaio para uma Nova Poesia Portuguesa”, e permito-me transcrever quanto sobre isso li, sempre na “Rua dos Dias que Voam” e assinatura de Gin-tonic:

“O que aqui se propõe é uma “leitura” – assumidamente subjectiva – da produção poética publicada no suplemento “Juvenil” do Diário de Lisboa. Entre 1967 e 1970, tendo por cenário a situação política e social do momento (inevitável ponto sincrónico entre a temática poética e a cronologia designada), valorizando o contributo deste suplemento para a história da imprensa periódica portuguesa.

Maria José Oliveira reconhece algumas imperfeições, fruto de inexperiência, condições de investigação, outras circunstâncias, mas conta voltar ao tema, aprofundar o trabalho iniciado.  

Estamos perante um primeiro passo – e sabe-se como são difíceis todos os começos… - na abordagem de algo que marcou, pelas mais diversas maneiras, toda uma geração, “essa corrida contra a ordem do silêncio”, para citar Hélia Correia. 

Lamentar que num país, onde o analfabetismo não se encontra apenas nos que não sabem ler nem escrever, onde se publica tanto lixo, livros que de certeza ninguém leu, jamais lerá, trabalhos como este não encontrem quem os publique.” Fim de citação. 

- Soube também que a Maria José Oliveira é a jornalista que, em 2012, teve de se demitir do jornal “Público” por pressão do então Ministro Miguel Relvas após um diferendo entre eles, recusando-me eu a tomar partido por ignorância dos factos, mas tomo nota do seguinte pormenor: a jornalista, que chegou a ser vilipendiada na altura por não poucos bem pensantes, foi obrigada a demitir-se por força do poder de um político com funções de Ministro, e o Ministro foi obrigado a, pouco tempo passado, demitir-se por força do poder da opinião pública, ou seja, do povo. E já dá para pensar de que lado possa estar a razão. 

- Mas como o Juvenil não se esgota na excelente poesia nele publicada no período a que se refere o trabalho de Maria José Oliveira, agora que encontrei no nº 179 do suplemento inserido no nº 13.588 do Diário de Lisboa, editado em 8 de Outubro de 1960, o meu texto “Parábola do Amor”, que abaixo transcrevo para uma mais fácil leitura, sinto-me ainda mais capaz de levar por diante o meu projecto, tanto mais que Nuno Rebocho escreveu que “…o Juvenil de Diário de Lisboa ficou uma legenda, uma nobre e indispensável referência. Dele sempre se falará, quando se evocar as décadas de 70 e 80 do século passado e se recordar como a juventude teve a coragem de dizer não ao salazarismo.” 

Deixando, como prometido, o meu texto, do qual não me envergonho passados 54 anos, apesar de não passar da ingenuidade de um jovem de 16 anos que contrapõe o branco e o preto, o bem e o mal, a luz e as trevas, o céu e o inferno, sem qualquer nuance, termino citando Mário Castrim: 

“A sala onde trabalho
É um barco no mar.
Um palanque de rei
Sobre sete cavalos enfeitados.
Minhas mãos
Tocam a forma de todas as coisas”
 

Parábola do Amor 

Eu e ela. Ela vinha numa estrada escura. Eu numa branca. Ela levava um cantaro. Eu não tinha nada. Os caminhos encontraram-se e com o contágio do branco o negro perdeu a cor. Seguimos os dois felizes. Do lado dela foram aparecendo vários outros caminhos negros. Ela talvez já cansada da alvura da estrada que eu lhe dei, metia por esses estreitos, escuros e pedregosos. Eu tirava-a porque sabia que no fim da minha estrada branca, havia uma fonte de água pura e ela tinha sede. E eu também. O cantaro estava seco. Consegui desviá-la sempre desses caminhos escuros. Mas se ela seguisse por algum desses eu iria atrás dela. Cheio de sede mas na ilusão de que o cantaro teria água. Se do meu lado apareceram maus caminhos, não os vi tão cego pela brancura do meu. Assim juntos vencemos todos os escolhos, transpusemos todos os precipícios. Mas um dia quando já cansados de procurar a fonte que nos enchesse o cantaro para matar a sede, apareceu do lado dela uma estrada tão branca como aquele que nós seguíamos. Com a sede ela delirou e julgou ouvir água a correr do lado dessa estrada. Pegou no cantaro e seguiu por ela. Eu fiz-lhe ver o engano mas ela não me ouviu. Só ouvia o fio de água imaginário que a sua febre arquitectara. E lá foi. Eu na certeza que na minha estrada encontraria a fonte, corri direito a ela para me dessedentar. Mas a água ficava fundo e só com o cantaro eu a poderia tirar. E então as duas estradas brancas foram escurecendo. Ou seríamos nós que com a nossa sede as víamos negras. Ela não tinha água. Eu não a podia beber. Ela desistiu de procurar a água. Eu continuei a procurar a cantaro. Mas o caminho estava cheio de espinhos, e começaram-me a aparecer os tais carreiros estreitos. Nunca os segui. Até que já morto de cansaço, encontrei alguém com um cantaro. Alguém que procurava a minha fonte. Voltámos os dois em busca dela, e a estrada que fôra escura tornou-se novamente branca; ainda mais branca. E quando um dia a minha estrada se acabou entrei num recanto maravilhoso. E vi desse recanto de sonho, duas pessoas a escalar uma enorme montanha negra; com o corpo amoldando-se às reentrâncias dos penhascos, rasgando a pele e as veias, em busca de uma fonte inutilmente. Ela já não tinha o cantaro. Se eu pudesse nessa altura de supremo sofrimento para eles, ajudava-os a subir até nós e a compartilhar da nossa felicidade. Mas quem estivesse observando, veria do outro lado da montanha um mar de fogo, cheio de monstros enormes, comendo as cinzas dos que como eles lá caíram. Deus lhes perdoe. 

Octávio Carmo de Oliveira Santos

(16 anos)