quinta-feira, 18 de setembro de 2014

De como o cronista se lança numa nova aventura mini literária, desta vez a singela tentativa de invenção do teatro bonsai, reduzindo a sua distância preferida de 100 metros planos para 60 metros obstáculos indoor, mas não indolor.

Com as cruzes derreadas pelos solavancos do Tuk-Tuk - nunca acordaram de um sonho com a sensação de ter sido a valer? -, lembrei-me que prometi a mim mesmo escrever uma tragédia teatral em III actos, que até já tem título  “ A Proverbial Metade da Maçã”, e então apeteceu-me começar a treinar. Abro um parêntesis para vos dizer que para mim sempre foi mais fácil inventar os títulos que escrever as tramas, e assim talvez o meu primeiro romance “Com estes dois que a Terra há-de comer” nunca venha a ser escrito, tal como o segundo “O Simplício de Tânia”, possa vir a não existir por um problema de sede de inspiração do autor, sempre com a espada do insucesso afiada sobre a sua cabeça vazia (Tântalo, Damocles, que confusão mental!). Como, quase sempre a realidade vem em meu socorro, toca de aproveitar os 35 anos do Serviço Nacional de Saúde e a declaração do seu fundador António Arnaud, que nos revelou que cada cidadão português paga do seu bolso um terço das suas despesas de saúde e, indo vasculhar nos meus textos de 23/1, 13/2 e 29/5, fácil me foi o título “Os três terços do rosário da saúde”, e embora vinculado aos três actos, permiti-me juntar um epílogo, passando imediatamente à acção da tragédia que dedico ao Senhor Ministro da Saúde (o melhor deste Governo, fazendo fé na opinião de gente que sabe: e quem sabe, sabe, como acabamos de verificar).

Iº Acto
Um hospital, um parque de estacionamento, um pavilhão, um posto de triagem, um elevador, um corredor com camas ocupadas, uma enfermaria com seis camas. A cena dura sete horas. O Homem entra e dirige-se à cama nº 23 onde está deitado o Menino e debruça-se para o beijar.

Homem: - Estás com óptimo aspecto!

Menino: - É. Sinto-me bem e isto foi a única maneira de tirar umas férias.

Acende-se uma luz vermelha e ouve-se um insistente sinal sonoro. Entra uma Enfermeira que atravessa sorridente a cena.

Enfermeira: - Terminou a limpeza. Agora vamos começar com o primeiro cocktail. Se sentir um calor anormal no corpo, toque a campainha. Até já.

Homem: - Vais ver que com isto safas-te em menos de um fósforo.

Menino: - É. Dizem que com mais duas sessões volta tudo ao que era antes.

Homem: - Terás depois de fazer uma vida mais tranquila, reduzir as obrigações e, sobretudo, as preocupações.

Menino: - Nada disso! No estado actual das coisas é só uma questão das doses justas e algum tempo e já está.

Entra um Senhor da Liga, bata branca, sorriso afivelado, saudações à esquerda e à direita, pára junto à última cama da direita, onde um Homem africano magríssimo tosse convulsivamente. O Senhor da Liga espera que passe o incómodo.

Senhor da Liga: - Então como se sente?

Homem africano: - Bem, muito obrigado.

Senhor da Liga: - De onde é o Senhor, que faz aqui em Portugal?

Homem africano: - Nasci em Angola. Sou engenheiro e trabalhei muitos anos numa empresa em Lisboa, mas agora estou desempregado.

Senhor da Liga: - Verá que quando sair daqui vai encontrar trabalho rapidamente. Estimo as suas melhoras. Até à amanhã.

O Homem ficou ao lado da cama do Menino até que todos os tubos e cabos que o ligavam à máquina sejam retirados pela Enfermeira.

Enfermeira: - O Senhor Doutor prefere que durma cá esta noite, pelo que só terá alta amanhã depois da visita.

Menino: - Paciência, vou aproveitar do vosso hotel.

Homem: - A que horas queres que te venha buscar amanhã?

Menino: - Não é necessário, obrigado. Tenho cá o carro, e quando estiver despachado corro para o Alentejo porque tenho lá a veterinária às 11. Almoço lá e ala para Torres que às 3 tenho a vistoria da loja nova.

Homem: - Até amanhã, fica bem. Se precisares de alguma coisa chama-me.

O Homem debruça-se sobre o Menino deitado e beija-o.

Fim do Iº Acto

IIº Acto

Menino (ao telefone): Olha, vê se me vens buscar porque há qualquer coisa que não está bem. Se puderes vem já.

Homem: - Dentro de meia hora apito ao portão. Até já.

Sorte que a A8 está sempre deserta, ou quase, e a meia hora foi respeitada. O Menino, magro, sem os caracóis e o brilho dos olhos, entra para o carro com dificuldade. Beijam-se mais lentamente. O carro arranca.

Menino: - Não vás muito depressa pois qualquer coisinha me provoca dores.

Homem: - Mas o que é que se passa? Já lá foste três vezes e a coisa deveria estar a resolver-se.

Menino: - Ou isto é pior do que parecia, ou os cocktails não foram os adequados, o que é certo é que não dormi com dores e, se estivesse em casa da Avó, diriam que tenho uma “barriga d’auga”. Não é fácil.

Mesmo hospital, mesmo parque de estacionamento, mesmo pavilhão, mesmo posto de triagem, mesmo elevador, mesmo corredor com camas ocupadas, uma cadeira de rodas para o Menino. A cena dura sete horas. O Senhor Doutor – jovem, simpático, lindo, no dizer das Senhoras -, após apalpação, pede ao Enfermeiro para entubar o Menino pelas narinas para recolha de líquidos gástricos.

Senhor Doutor: - Não se preocupe porque o inchaço não é devido à acumulação de líquidos, mas sim de gases, que irão sair naturalmente. As dores já passam com o analgésico que lhe vão injectar junto com o soro. Não precisa ficar internado. Passarei depois.

O Menino não geme nem faz cara feia enquanto o Enfermeiro o entuba, mas algumas lágrimas descem a ensopar a andaina que lhe enfiaram. Idem, na retirada do tubo. O Senhor Doutor volta a passar.

Senhor Doutor: - Então, como se sente?

Menino: - Não muito bem. O inchaço continua a aumentar, a dor é insuportável, parece que vou estoirar. Pôr e tirar o tubo foi a pior experiência que tive na minha vida. Agora já sei o que sentem os poldros quando os marco com o ferro em brasa.

Senhor Doutor (para o Enfermeiro): - Entubou o paciente sem anestesia?

Enfermeiro: - Desculpe, foi esquecimento; sabe que com tanto que temos de fazer…

Senhor Doutor (para o Menino): - Desculpe, mas estas coisas acontecem, errar é humano. Coitados.  Quanto aos gases, vai ver que vão diminuir. Já assinei a sua alta na papeleta da Senhora Enfermeira Chefe.

Mesmo local, entre dois corredores, camas ocupadas encostadas às paredes, uma hora depois o Menino continuava sentado na sua cadeira de rodas, com uma agulha sem qualquer ligação ao exterior enfiada numa veia do braço. Ao lado o seu Anjo de Guarda.

Anjo de Guarda: - Mas porque é que ainda estamos aqui Senhor Enfermeiro? Falta fazer ainda alguma coisa?

Enfermeiro: - Falta só tirar a agulha da veia e depois podem ir embora com autorização da Senhora Enfermeira Chefe. Estou cheio de trabalho e já passo por aqui.

Mais uma hora e aparece a Senhora Enfermeira Chefe.

Anjo de Guarda: - Há duas horas que estamos à espera que retirem a agulha da veia para nos irmos embora.

Senhora Enfermeira Chefe: - Trago-lhe já o Livro de Reclamações; agradeço muito que lá escreva as suas queixas. Quanto mais escreverem melhor.

Já sem contar o tempo, aparece novamente o Enfermeiro.

Anjo de Guarda: - Pode agora fazer o favor de retirar a agulha da veia, para irmos embora. É que moramos em Torres, e a esta hora ainda não almocei.

Enfermeiro: - Nunca se vem para aqui de longe sem almoço! Foi uma imprevidência sua! Conheço muitos bons restaurantes em Torres e até lhos posso indicar.

Talvez ele próprio incomodado com o que acabara de dizer, o Enfermeiro retirou a famigerada agulha em três segundos, massajou ligeiramente, pôs um penso rápido e retirou-se a correr. A cabeça da Senhora Enfermeira Chefe apareceu a uma janelinha e viu que a agulha já não estava no braço do Menino.

Senhora Enfermeira Chefe: - Tem alta. Podem ir embora. Boa tarde.

Anjo da Guarda e Homem (em uníssono): - Muito obrigado, Senhora Enfermeira Chefe!

Fim do IIº Acto
IIIº Acto

Menino (ao telefone): - Isto está cada vez pior. Podes vir buscar-me para irmos onde talvez me resolvam o problema. Se me tirassem estas malditas dores já não seria nada mau.

Homem: - Fazemos como ontem. Estarei aí num tiro.

A A8 sempre vazia é autódromo e a meia hora foi reduzida. O Menino, com dificuldade a andar, faces e têmporas encovadas, parece ter o nariz maior. Abraçam-se e beijam-se mas o abraço não tem peso, é mais um amparo. O carro arranca devagar e segue evitando covas e lombas.

Menino: - Ontem falei com alguém que me aconselhou a ir experimentar outra coisa. Telefonei e estão lá à minha espera para avaliarem a situação. Vamos a ver se é desta.

O Homem não encontrou nada para dizer para além das banalidades do costume. Chegaram a um edifício moderno, diria mesmo futurista, junto ao rio. Dentro, um ar de bem estar palpável, silêncio digno de sala de concerto. Inevitável o ponto de triagem, mas tudo rápido. O Menino foi levado e voltou a aparecer uma hora depois.

Menino: - Podes vir comigo porque parece que me vão tirar os “gases” diagnosticados ontem. Este médico nem queria acreditar no que lhe contei, mas fechou-se em copas; defendem-se uns aos outros.

O Homem acompanhou o Menino até um quarto onde o despiram e deitaram na única cama presente. Pelo volume da barriga, não fossem certos acessórios incompatíveis, poderia pensar-se na preparação de um parto. O Enfermeiro enfiou no ventre do Menino uma agulha grossa ligada por um tubo a um saco de plástico vazio que jazia por terra.

Enquanto o Menino e o Homem falavam de tudo e de nada, do passado e do futuro, dos erros e dos acertos, das presenças e das ausências, dos cavalos e dos poetas e de tantas outras coisas, só para não estarem calados, o Enfermeiro entrava e saía, tendo despejado três daqueles sacos que continham, cada um, dois litros e meio de um líquido que ainda na véspera era gás.

Menino: - De agora em diante são estes que vão tomar conta de mim. Andei a perder tempo e a encanar a perna à rã, mas desta vez a coisa vai-se compor se Deus quiser.

Homem: - Penso que tens razão; pelo menos agora não te dói nada e até pareces outro. Estás com melhor cara. Vamos almoçar outro cantaril como da última vez? Era óptimo.

Menino: - Não seria capaz. Estou sem apetite e só desejo ir para casa deitar-me. Sabes que quando as dores apertam, encho a banheira de água quente e meto-me lá dentro duas ou três horas. Aprendi com a Mãe que as dores se dissolvem na água.

O Homem e o Menino voltaram a abraçar-se e a beijar-se e cada um foi à sua vida: muito diferentes, mas vidas eram.

Fim do IIIº Acto 

Epílogo

Menino (ao telefone com uma voz muito fraca): - Parece que tenho de ser internado hoje e prefiro ir contigo que numa ambulância. Podes?

Homem: - Trata de ti que vou já para aí.

Aqueles que se queixam por tudo e por nada, sempre prontos para dizerem que vivem num país de merda, não percebem que podem não ter um serviço de saúde ao nível de um país civilizado, mas que outro país tem auto-estradas vazias para o cidadão acelerar em solidão à medida das suas necessidades? É sempre esta mania de dizer mal! O Menino que me esperava, e que trouxe comigo para a sua penúltima morada, já não era Ele e, por isso, poupo a descrição (as maquilhadoras do teatro terão de exagerar, mas isso é o trabalho delas). O trajecto foi feito quase em silêncio.

Menino: - Aconselharam-me o internamento porque assim é mais fácil para a equipa estar em cima da coisa, e decidirem o que fazer a cada momento.

Homem: - Penso que têm razão. Assim poderão controlar tudo e ir actuando à medida das necessidades até que a coisa desapareça e tudo volte à normalidade.

Outro hospital, outro parque de estacionamento, outro pavilhão, outro posto de triagem (este demorado),outro elevador, outro corredor (este sem camas). A cena dura onze dias. O quarto é o 623, tem todo o equipamento que o caso exige, e uma grande janela sobre o arvoredo. No corredor do sexto andar, existem dois biombos, um em cada ponta, diante das janelas, com a imagem do Elvis. Conforme a luz do Sol que entra, a imagem do ídolo muda do amarelo ao roxo, mas ele está sempre sorridente, jovem, com a sua inconfundível poupa. Falta só o som da sua voz e os gritos das suas fãs enlouquecidas. No corredor algumas vozes baixas, gritos nunca. Tudo soft.

Agora tudo são rotinas que se aceleram. A dose de morfina, o último inútil cocktail, as refeições apenas beliscadas, o "Santini" de morango, as peras rocha cozidas, as últimas decisões, os últimos telefonemas, um dos quais às escondidas para um padre amigo, que veio e ficou a sós com o Menino. Na memória ficam os Fôfos de Belas com velas no dia do aniversário, um nas mãos de cada Neto, os parabéns a você entalado nas gargantas, o pedido para o substituírem na recepção de uns franceses que vieram comprar uma égua, o fatal “Já desisti!” em resposta a uma pergunta angustiada, o último ininteligível telefonema para a empresa que estava a colocar os autocolantes na loja nova, e ainda uma pincelada de humor. A dois médicos que se contradiziam sentados na sua cama, o Menino levantou a voz e perguntou: - Gostava de saber quem vai a conduzir este autocarro; acontece que o único passageiro sou eu! Depois a vinda do Anjo que o veio buscar. O Menino abriu os olhos e disse: Chegou o meu amor! Pediu para o sentarem no sofá, deram-se as mãos e falaram durante meia hora de coisas que tinham para falar. Voltou para a cama, a sua boca não mais articulou palavra e doze horas depois respirou muito fundo, deu um Ai! rouco e prolongado; o Homem fechou-lhe os olhos, inclinou-se para o último beijo, e o Menino arrefeceu rapidamente. Cai o pano.

FIM

Abraço.

Lisboa, 18 de Setembro de 2014.
Octávio Santos