quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Tendo rumado ao Sul, o cronista arribou à Vila Ducal em festa, com os seus belos monumentos, magníficas igrejas e imponentes solares, uma serpente crucificada, largadas de touros bravos mas colaborantes, escuteiros a servir à mesa, com a boa surpresa de encontrar um pirotécnico “Dubai on Capuchos”, e o que de tudo mais adiante se dá conta.

Prometi na crónica anterior dar parte de tudo o que me foi dado ver e ouvir durante as Festas dos Capuchos, em Vila Viçosa, e cá estou, continuando a fazer um esforço suplementar para vos dar notícia da parte negativa, como o meu maldizer exige, embora desta vez ainda me seja mais difícil o exercício, por manifesta falta de matéria.

Desatento como sou, Vila Viçosa era a sede do Palácio Ducal e, para mim, que privilegio sempre as coisas pequenas, a extraordinária Porta dos Nós; berço de D. João IV, o Rei da Restauração e de Florbela Espanca, terra de mármores e pouco mais. Na primeira visita que fiz à cidade descobri, para além do citado Palácio, o Castelo, o túmulo da “minha” poetisa, a Igreja de S. João Evangelista, também chamada do Colégio ou de S. Bartolomeu, as Igrejas e Conventos da Conceição, de Sto. Agostinho e das Chagas. Desta vez, pela mão dos meus anfitriões e em dia de festa, descobri muito mais coisas que, catalogo, como sempre, sem qualquer ordem ou nexo:

- Que, no Carrascal, a Igreja de Nossa Senhora da Lapa é um magnífico exemplar de arquitectura barroca, tendo à sua frente o Cruzeiro da Serpente, estranha cruz em pedra que, em vez do Cristo Crucificado tem uma serpente que parece representar a redenção do pecado e a esperança de salvação.

- Que, no meu caso, habituado a ver caras fechadas e tristes no Metro de Lisboa, foi de bom augúrio ver rostos abertos e sorridentes, da largada de touros ao terreiro dos Capuchos. Seria só por ser festa?

- Que, para além de D. João IV e Florbela Espanca, nasceram na vila D. Catarina de Bragança, que foi Rainha de Inglaterra por casamento com Carlos II, Salvador de Brito Pereira, pai de S. João de Brito, Martim Afonso de Sousa, fundador do Rio de Janeiro, Públia Hortênsia da Costa, poetisa, percursora de Florbela, Henrique Pousão, mestre da pintura impressionista, Bento de Jesus Caraça, matemático e político, Couto Jardim, médico e benemérito com o seu nome ligado a várias instituições humanitárias calipolenses, Manuel Lopes, dito Palangana, pintor e escultor com obras espalhadas por todos os cantos da cidade, como o fresco do Posto de Turismo (ver imagem), o monumento a Couto Jardim e o restauro das figuras cerâmicas da representação da morte de S. Francisco de Assis, na Igreja dos Capuchos, Manuel Lereno, actor teatral, e Nuno Portas, arquitecto, este felizmente vivo e em actividade. Voltando a D. Catarina de Bragança, lembremos que foi ela quem introduziu o hábito do chá das 5 na corte inglesa, e deu o nome ao bairro nova-iorquino de Queen’s, onde tem uma estátua- cuja cópia está em Lisboa, no Parque das Nações -, ligando perenemente a Vila Ducal à Grande Maçã: VV = NY!!. Que me perdoem John Kander e Fred Ebb, Frank Sinatra e Lisa Minnelli, mas não soube resistir! Dava tudo para ouvir esta versão nas Festas de 2015, depois de arranjada por alguém que de música seja entendedor.

- Que, nas largadas de touros que tiveram lugar nas três manhãs dos dias festivos, não se assistiu a actos de temeridade, próprios destas manifestações, por parte dos machos para impressionarem as moças, mas a uma festa em que vimos também algumas meninas a fugirem diante das feras que, pareciam cientes de não estarem ali para magoar ninguém. O único ferido foi um dos bovinos que, ao descer da caminheta que o transportou “partiu uma mão da frente” no dizer de um espectador ao meu lado.

- Que, para além das unidades hoteleiras de altíssimo prestígio e qualidade, nos podemos aboletar em excelentes estabelecimentos sem ter de recorrer a empréstimos bancários, como foi o meu caso no “Solar dos Mascarenhas”, um três estrelas a 50 metros do Palácio, que me obrigou a vir cá fora verificar se não teriam surripiado uma ou mesmo duas estrelas da insígnia na fachada. A começar pelo discreto e acertado projecto arquitectónico do conjunto, os quartos e suites, os pátios interiores - um dos quais com piscina -, o lauto pequeno-almoço, a cortesia dos anfitriões e a conta final indolor, tudo contribuiu para gravar na memória esta curta estadia em terras alentejanas.

- Que, à noite, a caminhada do centro ao terreiro das Festas dos Capuchos, sob um magnífico céu estrelado, se fez com calma e na boa paz do Senhor, sem atropelos ou altercações (devo assinalar que não assisti, durante as festas, nem a uma troca azeda de palavras, mesmo entre aqueles visivelmente desasados por uns chumbinhos). É certo que os “Irmãos Verdades” não são o Justin Bieber ou a Miley Cyrus, que as bifanas, cacholeira e sangria dos Escuteiros do 636, não chegam aos calcanhares das pizzas de 60 euros do José Avilez , mas quem me diz que eu trocaria os agradáveis momentos que passei por qualquer outra coisa, mesmo a mais sofisticada?

- Que, o fogo de artifício, que durante uma boa meia hora nos encheu olhos e ouvidos, quase nos caindo no prato, de tão colorido e feérico me levou a exprimir no título o exagero de uma das convivas: “Dubai on Capuchos!” Quando estalou o último PUM! e no céu se apagaram os derradeiros cometas, penso ter descoberto, pelas dores nas cervicais, que quem sponsorizou o fogo foi certamente a Ordem dos Ortopedistas, a mesma que em Lisboa continua a sponsorizar a calçada à portuguesa. Mas que foi lindo, lá isso foi!

- Que, Nossa Senhora da Conceição, Padroeira da Vila Ducal e de Portugal, é omnipresente e figura central em todas as suas manifestações. Foi em Vila Viçosa que D. João IV ofereceu o Portugal recém libertado à Virgem “depondo a coroa real aos pés da Rainha do Céu que, doravante, seria também a Rainha de Portugal”. Dizem que, a partir desse momento, “os reis seus sucessores nunca mais puseram sobre a cabeça a coroa real”. Para mim, o desnecessário, talvez pensando em tudo o que estamos a assistir neste vale de lágrimas, foi a criação da Ordem Militar de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa. Atrevo-me a pensar que nem Ela apreciou a honraria, dispensando-a com alegria celestial.

- Que, o Castelo alberga dois museus: o Arqueológico e o da Caça. Arquivado já este, porque não gosto de animais mortos a fingir que estão vivos, como o poeta setubalense António Osório escreveu num dos seus haikais, seduzido pelo que ouvira a uma menina que, não sendo de Vila Viçosa o poderia bem ser, perguntar ao Pai:
            “O que é aquilo?
            Uma perdiz embalsamada.
            E ela finge que está viva?”

O único animal que teve para mim algum interesse foi a abetarda, animal imponente, já que nunca vi nenhuma em vida e, ao que parece, existem já bem poucas em Portugal. Que o Senhor Rei Dom Carlos tenha ou não descido o Zambeze em piroga e morto o enorme crocodilo que lá está de boca aberta, ou que o pobre réptil tenha ido ali parar com outra história para contar, interessa-me pouco: E ele finge que está vivo? Uma ressalva é devida: o museu merece a visita para aqueles que se interessam por armas. Cerca de 200 exemplares de armas gentílicas proveniente das nossas ex-colónias, outras armas brancas e uma vasta colecção de carabinas de caça de todos os calibres.

O Museu Arqueológico é outra coisa; arejado, bem dividido por épocas, peças magníficas e bem expostas, uma didáctica impecável. Estando nele representados todos os períodos, aquele com mais peso é o romano, através de um vasto, valioso e interessante espólio de objectos de uso quotidiano. O núcleo principal é constituído pela notável colecção pessoal de D. Luis I. Uma lição de história para um leigo na matéria como eu, estando em crer que até muitos conhecedores lá irão encontrar surpresas e ensinamentos.

- Que, a Rainha Senhora Dona Amélia, Amélie d’Orleans por nascimento, deixou na vila dignas sucessoras e estou a pensar na Amélia que nos recebeu na sua terra, e em sua casa, que por coincidência fica na rua com o nome do seu Pai, Manuel Lopes o já citado Palangana, com uma doçura e simplicidade a ela congénitas, que só esta última geração de rainhas que conhecemos compreendeu ser seu natural apanágio, para além de atrair outras Amélias - Amélià e não Amélie como deve ouvir todos os dias dans l’exercice de ses fonctions -, tendo ambas sido responsáveis, tal como todos aqueles que fizeram parte do grupo, pela agradável e inesquecível passagem por Vila Viçosa.

Para terminar em beleza, lá fomos novamente em excursão, mudando outra vez de concelho, desta vez o de Borba, para Alcaraviça, onde, no Monte das Naves de Cima se esconde o restaurante Espalha Brasas, no qual nos amesendámos para satisfazer palatos e estômagos com a cozinha típica da região. Tenho pena de não ser apreciador de coelho, que dizem ser, juntamente com a sopa de tomate, o prato forte do local. Arrependo-me de não ter pedido a sopinha, mas tive receio que não me restasse espaço para mais nada, sabendo a que é que os alentejanos chamam sopa. Mas o meu chispe no forno estava de comer e chorar por mais- ainda tentei roubar do prato ao lado - , macio e bem temperado, e os outros convivas também não se queixaram do cabrito com batatas e dos palitos de entrecosto com migas. Para a próxima vez vou pedir a sopa e a galinha tostada, que a vi passar (não pelo seu pé), e que, para além de me ter parecido apetitosa, cheirava bem. Mais que correcto o vinho da casa e sobretudo os preços praticados. Por caridade cristã recuso-me a referir as sobremesas provadas e o licor de poejo, mas, por imperativo de justiça, louvo o meu já conhecido licoroso da Adega Cooperativa de Borba com que encerrámos o divertimento gastronómico.

Se tivesse que resumir tudo numa só palavra diria a mesma que disse após a visita à Herdade das Servas, “Voltar”, e vou já pôr-me a magicar no que vos hei-de impingir na próxima semana. Como tentei o teatro há 3 semanas, estou cá a pensar incomodar Monsieur de La Fontaine e ensaiar uma fábula com animais devidamente adaptados ao Mundo actual, rico de técnica mas pobre de ética, em que vivemos e onde tanto gostaríamos de ser felizes. Mas porque é que não nos deixam?

 Abraço.

Lisboa, 2 de Outubro de 2014
Octávio Santos