quinta-feira, 5 de maio de 2016

A “Pastiera” napolitana: receita original, seus truques e segredos. Sentindo-se por fim escritor, o nosso pobre cronista recolhe a penates, onde outros “cozinhados” o esperam, temendo ele que lhe cortem a luz e o gás antes de ter tempo de os acabar e, sobretudo, servir.


A “Pastiera” napolitana é um doce tradicional partenopeu (relativo a Nápoles, antes Partenope), típico do período pascal, feito à base de uma massa de farinha de trigo, manteiga, açúcar e ovos, e de um recheio composto de grão de trigo, requeijão, casca de limão e de laranja, crua e cristalizada e, sobretudo, do perfume intenso de flor de laranja. É um doce rico, importante, muito saboroso, que não pode faltar à mesa no almoço de Domingo de Páscoa dos napolitanos e restantes habitantes da Região da Campanha, de que Nápoles é capital, o qual combina a firmeza tenra da massa com o veludo macio, cremoso e perfumado do recheio.
E esta é a receita original daquela que foi a sobremesa do meu almoço do passado Domingo de Páscoa, que aqui vos deixo, nos seus mais pequenos pormenores, com a não velada intenção de me passarem a considerar finalmente como alguém que escreve coisas úteis, sabendo eu interpretar os sinais dos tempos, todos virados neste momento, que espero passageiro, para a gastronomia, bastando ligar a televisão ou passear os olhos pelas montras e escaparates das cada vez menos livrarias de Lisboa, e do país,  para constatar o andaço. Basta dizer que, em semana de Panamá Papers, a Revista do Expresso dedicou a capa e mais 10 páginas ao tema paparoca.

1 –   Tempo de preparação: 1 hora  
         Tempo de cozedura: 2 horas 
         Tempo total: 3 horas

         Tempo de gozo: a eternidade

2 -  Ingredientes para uma “Pastiera” com 28/30 cm de diâmetro

a)     Para a massa

330 gr. de farinha de trigo para pastelaria + 2 x 6/7 gr. da mesma farinha

165 gr. de manteiga a temperatura ambiente

130 gr. de açúcar branco

1 ovo médio inteiro

2 claras de ovo pequeno

½ colher de café de fermento em pó

2 colheres de chá de  aroma de flor de laranja (duas gotas, se  concentrado)

1 casca de limão médio, raspada

1 pitada de sal

 

b)     Para o creme de requeijão

350 gr. de requeijão de ovelha completamente enxuto

300 gr. de açúcar branco

3 ovos médios inteiros

2 claras de ovo médio

½ colher de chá de canela

4 colheres de chá de aroma de flor de laranja (1 colher de chá, se concentrado)

70 gr. de casca de citrinos cristalizada (em pequenos cubos)

 

c)     Para o creme de grão de trigo

150 gr. de trigo cru em grão ou 300 gr. de grão de trigo cozido

200 gr. de leite inteiro fresco

1 casca inteira de laranja média

1 casca inteira de limão médio

25 gr. de manteiga

Utilizar uma forma de alumínio leve, com fundo de 28/30 cm, a alargar para o bordo, com 4,5 cm de altura.

Atenção: Essencial saber sobre a utilização do grão de trigo, que é o ingrediente base e insubstituível da “Pastiera”:

Caso venha s ser utilizado o grão cru (pureza máxima da receita original), o mesmo deve ser posto de molho durante 3 dias, mudando a água de manhã e à noite, o que quer dizer que se quiserem comer a “Pastiera” no almoço de Domingo de Páscoa, terão de o pôr de molho na quinta-feira de manhã. Vem depois lavado, enxuto e metido numa panela com água suficiente para o cobrir por completo, levado a lume de chama alta até levantar fervura, prosseguindo depois a cozedura em lume brando durante uma hora e meia sem ser mexido. Uma vez cozido, retirar-lhe toda a água ficando pronto para ser utilizado. Caso seja usado o grão já cozido, o dobro da porção, (300 gr. em vez de 150), basta seguir as operações indicadas no capítulo “Como preparar o creme de grão de trigo”.

Vamos lá pôr então a mão na massa, que deve ser preparada com 12 (melhor se 24) horas de antecedência:

Meter no recipiente de uma batedeira eléctrica a manteiga (macia), o açúcar, a casca de limão (raspada) e o aroma de flor de laranja, e bater tudo por 3/4 minutos até obter um creme. Aumentar a velocidade e juntar o ovo inteiro seguido das claras, uma de cada vez, juntando só a segunda quando a primeira estiver já bem incorporada, até obter um creme liso, homogéneo, sem grumos; juntar a pitada de sal. Parar a batedeira e juntar de uma só vez a farinha, precedentemente passada por uma peneira para que não tenha qualquer grumo, e o fermento em pó. Mexer tudo à mão com uma colher de pau até obter uma massa compacta mas macia. Transferir a bola de massa obtida para um plano de trabalho devidamente enfarinhado (6/7 gr. de farinha) e amassá-la à mão por uns bons 5 minutos. Apertar então a bola até lhe dar a forma de um disco voador espesso (metade da altura da bola), que será envolvido em película transparente e metido a repousar no frigorífico, para posteriormente, muito firme e fresco, poder ser trabalhado.

E aqui passamos à primeira fase da preparação do creme de requeijão que, tal como a massa, deve ser feito com 12/24 horas de antecedência:

Apertar num pano o requeijão para que perca todo o seu soro, deitá-lo num recipiente onde lhe será adicionado o açúcar, mexendo tudo à mão com uma colher de pau até que fique homogéneo, ou seja, que o açucar se dissolva completamente no requeijão. Tapar o recipiente com película transparente e toca a andar para o frigorífico a fazer companhia à massa, até ser chamado para as operações finais.

Na manhã da preparação da “Pastiera”, vamos começar pelo creme de grão de trigo: Deitar num tacho médio o grão de trigo, o leite, a manteiga, e as cascas inteiras do limão e da laranja, levando tudo a cozer em lume brando por 25/30 minutos, mexendo constantemente com uma colher de pau (omiti o óleo de cotovelo na lista dos ingredientes), obtendo assim um creme muito aveludado. Retirar, eliminando-as, as cascas dos citrinos inteiras sem desperdício de creme (podem lamber só um bocadinho), retirar cerca de 100 gramas do creme, parte que será homogeneizada com uma varinha mágica; não mais de 100 gr. porque a presença dos grãos de trigo inteiros deve fazer-se sentir no resultado final. Juntar então os dois cremes, o batido e o não batido, deixando arrefecer tudo.

Voltar então ao creme de requeijão, que deve começar por ser coado por um chinês de furos fininhos, operação muito chata mas indispensável porque tudo deve ficar absolutamente macio e cremoso sem um único grumo. A este ponto, juntar-lhe a canela, misturando-a bem no creme, e só depois os ovos inteiros e as claras, um de cada vez, ovos e claras, juntando cada um só após o precedente estar bem absorvido. E, agora, vamos juntar os dois cremes mas só quando aquele de grão de trigo estiver completamente frio; com tudo bem homogeneizado juntemos as cascas cristalizadas dos citrinos em pedacinhos muito pequenos, ou um pouco maiores se gostarem mais assim, mexendo tudo bem, e o creme assim pronto, que á afinal o recheio da nossa “Pastiera”, é coberto com película transparente e vai para o frigorífico.

Regressemos agora à massa que está há dois dias à nossa espera: Enfarinhar bem o plano de trabalho (6/7 gr. de farinha) e estender nele a massa, agora dura e fria, com o velho rolo da dita (devidamente higienizado em caso de recente utilização no legítimo consorte) até que a mesma atinja a espessura de 4 mm; forrar com ela a forma, previamente untada com manteiga e enfarinhada, cortando todo o excesso que ultrapasse os bordos da forma. Com um garfo picar o fundo da massa (10/15 garfadas), e com uma faca afiada fazer ligeiros cortes à volta dos bordos da mesma. Colocar a forma no frigorífico enquanto, com o que sobrou da massa que deve estendida com a mesma espessura (4 mm), se cortam 6/8 tiras com o máximo de 1,5 cm de largura, colocando-as no frigorífico. Com a massa fria (é muito importante para o resultado final), tanto a da forma como a das tiras, retirar tudo do frigorífico, deitar o recheio sobre a massa na forma sem a encher completamente (deixar ½ cm livre) e dispor 3/4 tiras de massa paralelamente sobre a “Pastiera”, e as outras 3/4 a formar losangos com as primeiras, cortando o que das tiras ultrapassar os bordos da forma e apertando com os dedos as extremidades das mesmas contra os ditos bordos e, a este ponto, a “Pastiera” está pronta para ir para o forno, podendo ir novamente para o frigorífico, enquanto se cuida deste.

Para uma cozedura perfeita a temperatura não deve ultrapassar os 150º Celsius, porque só uma cozedura lenta e branda lhe garante a consistência e sabor característico. Com o forno (melhor se não ventilado) já quente, meter a forma da sua zona média/baixa e deixar cozer por 1 hora e 45 minutos. Ao fim de 1 hora, se a “Pastiera” estiver a ficar muito pançuda, abrir ligeiramente o forno e voltar a fechá-lo. Durante os últimos 15 minutos convêm controlar a cor da “Pastiera” que, se se apresentar ainda pálida, deve subir para a parte média/alta do forno para ganhar uma bela cor de âmbar; só no caso de continuar descorada se poderá levantar a temperatura até 180º nos últimos 5 minutos. Fazer então a prova do palito, que deve sair enxuto. Desligar o forno e deixar repousar durante 30 minutos a maravilha (estou farto de repetir “Pastiera” e não me atrevo a chamar-lhe bolo ou tarte), com a porta do forno entreaberta, usando uma pega, uma colher de pau ou mesmo um Salazar. Retirar do forno e deixar arrefecer a temperatura ambiente.

Só no fim é que vi que a receita rezava assim: “Não tocar na “Pastiera” pelo menos durante dois dias. Os seus aromas e perfumes devem revelar-se lentamente”. Disse-vos antes que para se comer esta maravilha no almoço de Domingo de Páscoa seria necessário começar a prepará-la na Quinta-feira Santa, mas com esta novidade penso que o melhor é começa-la no Carnaval. Finalmente mais isto, que traduzi à letra:

Como conservar a “Pastiera” napolitana

A “Pastiera” conserva-se perfeitamente à temperatura ambiente, em local seco e fresco, 7/10 dias, e isto graças à presença das frutas cristalizadas que preservam a humidade do recheio mantendo-o integro. Não meter a “Pastiera” no frigorífico. Não a manter junto de fontes de calor.

E cheguei ao fim, lembrando-vos que o meu futuro se adivinha incerto dado que, se bem recordo, também o Manuel Luís Goucha começou com programas de culinária, e não autorizo ninguém a dividir e italianizar esta palavra.

Abraço, e até um dia destes!

Lisboa, 5 de Maio de 2016
Octávio Santos

PS: Tenho a certeza que esta 101ª crónica foi a única inteiramente doce que vos dei até hoje.

quinta-feira, 28 de abril de 2016

Último retalho da manta do centenário, natureza não completamente morta, aqui relatada pelo cronista com a minúcia e precisão de um Fernão Lopes perseguindo empresa de navegação, desta vez em águas calmas, no metro do Lumiar à Praça da Figueira, com excursão automóvel a S. Pedro de Sintra.


A imagem já a estão a ver aqui a encabeçar esta crónica nº 100 e dizem que uma imagem vale por mil palavras, mas não neste caso porque me veio a gana de contar-vos tudo e então foi assim - e não acrescento “ prontos” por temer que o fim esteja longe -, estava eu a olhar para uma natureza morta do Goya numa exposição de pintura espanhola no Museu das Janelas Verdes, que representava uma mesa rústica com tudo em cima, como nozes e avelãs, rebuçados, um cesto com um pano de cozinha com ervas e ramos de cheiro, talheres oxidados, barros, faianças e vidros, umas cascas de caracóis e uns escaravelhos secos, e até um coelho morto. Com esta na cabeça calhei ver em casa uma caixa de madeira daquelas para uma só garrafa de Vinho do Porto, gravada a fogo com o nome do produtor, James R. Dow, levei-a ao Sr. Agostinho na Rua do Lumiar, dei-lhe as minhas instruções, e dois dias depois fui lá buscá-la transformada em mesa - não me deve nada, foi tão pouco, disse-me ele – que passou a ser a base daquela que seria a minha natureza morta em 3D, só não o sendo porque o Bernardo me deu a ideia de lhe introduzir uma planta viva num vaso com terra e tudo, hera trepadeira que tenho agora de regar todos os dias com uma colher de chá. 

E aqui começa o relato chato das diversas fases da “criação da obra prima”, e o rol de todas as peças que a compõem: Fui a um dos 50 chineses das Avenidas Novas e comprei uma tela de 60x40, e ao ferrageiro por baixo da minha casa (nem este nem o chinês aceitaram sponsorizar a obra pelo que não cito nomes) vindo de lá com um tubo de Pattex – Não mais pregos (estes pagaram); dividi a tela no sentido horizontal – 23 cm para baixo e 17 para cima -, pintei a parte inferior com tinta acrílica “amarelo vermelho de Nápoles” comprada no El Corte, colando-lhe a mesa em baixo à direita. A parte superior foi forrada a seda vermelha com flores-de-lis douradas, tiras de uma minha gravata Guy Laroche comprada há mais de 30 anos no freeshop do aeroporto de Viena. Começou então a minha peregrinação à Artspot, na Rua Alexandre Ferreira, paralela à Rua do Lumiar, aquela dos Inválidos do Comércio, e lá adquiri o que consta do rol abaixo:

Tabuinhas e perfis de diversas medidas, 4 molduras, uma cruz, duas cantoneiras, uma roda de leme e uma âncora e quatro rodelinhas furadas, tudo isto em madeira; 50 telhas, uma meia cafeteira, uma moldura, um violino e dois livros, estes em gesso; uma moldurinha redonda, uma bandeja, duas chaves e uma placa gravada “Feito à mão”, em metal, e ainda um espelho oval, um camafeu em resina, diversas tintas acrílicas, colorantes para madeira e diluentes. Munido de todo este arsenal, fui fazendo por esta ordem:
 

Pintei um perfil em ouro velho e colei-o a delimitar as duas zonas da parede de fundo; com umas tabuinhas tintas cor panga-panga (agora diz-se wengué) construí o soalho, com outras o tecto com barrotes à vista, tudo bem colado e pregado não vá a casa cair, e arquivemos já a parte de cima, aquela forrada a seda, que tem penduradas três molduras em ouro velho cada um com o seu quadro - “La Fornarina” de Rafael, a Guilhermina Suggia deste blogue, e um outro que não sei de quem é mas  que representa um batoteiro  a jogar as cartas com uma Senhora (sueca? refiro-me a ela, não ao jogo), uma moldura oval em estanho polícromado com o espelho, a cruz de madeira, meio ouro meio estanho, com um crucifixo colado em cima, este encontrado nas minhas coisas búlgaras, e uma prateleira apoiada em duas cantoneiras (tudo wengué), a qual suporta 3 naperons de linho e renda (depois explico quando descrever o cadeirão), uma concha de madrepérola com dentro um cestinho originário da Colômbia, que serve de ninho a um ovo de passarinho apanhado intacto numa rua de Lisboa, debaixo de uma árvore, estando ali como metáfora do seu próprio duplo  milagre, mais dois castiçais em estanho com velas, tudo encontrado nos acessórios de aniversário do El Corte, velas que só acendi para a fotografia porque queimam o tecto e lá se vai a obra para o maneta, mas  talvez o faça um dia durante um happening queimando tudo em directo para o You Tube, que receberia muitos likes, quanto mais não fosse dos milhares de pirómanos à solta neste país.

Aqui obrigo-me a revelar os outros fornecedores, porque a sponsorização assim o exige, com a respectiva lista de bens fornecidos:
 

-Do Hospital da Bonecas, na Praça da Figueira, 7, trouxe: um cadeirão em madeira, um gato de louça, um cestinho de verga, uma malga de faiança polícroma e dois pratos metálicos com os respectivos talheres. 

-No Horto do Campo Grande, em São Pedro de Sintra, encontrei um vaso em faiança, o seu prato recolhe água, em plástico, um vaso com uma hera anã e uma bobeche de vidro transparente com filete dourado.

Disto isto passemos à mesa que vamos dividir em parte de cima e parte de baixo. A parte de cima foi coberta com uma toalha feita de um pano bordado que uma amiga brasileira, já falecida, nos ofereceu em Sófia nos anos 80 do século passado. Sobre a mesa temos um vaso de faiança, comprado branco no El Corte e decorado por mim, a azul e ouro velho, com motivos vitícolas copiados de uma chávena de café “Made in USSR”, vaso que contém um ramo de flores secas naturais que uma florista do Mercado do Saldanha me ofereceu, mais uma flor de orquídea seca em casa. À volta do vaso temos, da direita para a esquerda, a meia cafeteira e uma caneca de estanho, sendo esta última o primeiro dedal da Manuela quando a Mãe começou a ensiná-la  a costurar, com uma asa que lhe inventei, o cesto de verga forrado com um tecido aos quadradinhos tirado de uma embalagem de camembert, com pão verdadeiro feito em casa, 4 rebuçados sendo 2 do Dr. Bayard, um pratinho de metal, com um naperon de renda, com um bolo que vinha na “Galette des Rois” que comprámos este Natal na L’Éclair da Av. Duque d’Ávila, um outro pratinho idêntico, vazio, com os talheres ao lado, uma malga polícroma também vazia (que se pode encher de quinoa ou bagas goji), uma estrela-do-mar, uma casca de mexilhão e outras conchinhas, bivalves e búzios, uma moldura, azul e ouro, com uma “Cabeça de Velho” de Dürer, alternativa ao rinoceronte por ele imortalizado, que não era mais que aquele que D. Manuel I mandou ao Papa Leão X, e acabou por morrer afogado ao largo de Génova, porque a sua gravura é horizontal e o Velho é vertical (os velhos são quase sempre verticais), um prato de vidro (a bobeche) com laranjas bonsai e kunkuates secos, uma garrafa de Fernet-Branca e outra forrada a palha, que contém essência de alfazema “Spiritual Sky”, nunca aberta, oferecida em Sófia por uma outra amiga brasileira, esta felizmente ainda viva. Na parede sobre a mesa está pendurada a moldura metálica com o camafeu. E vamos para baixo da mesa. 

E aí vemos, levantando a borda da toalha, da direita para a esquerda: um atado de lenha, uma bilha (roubada ao presépio), uma pinha, uma bandeja metálica com romãs anãs secas, da nossa varanda, um pedaço de madeira fóssil apanhado na praia, uma lasca de xisto alentejano, uma roda de leme e uma âncora, um caixote feito de uma embalagem de camembert, com frutos secos de roseira brava do Jardim da Gulbenkian, duas telhas que sobraram do telhado, um ramo seco de malvas e pinhas e, por fim, um balde de madeira (também roubado ao presépio) com um botão de rosa seco.

Acabada a mesa, temos no espaço livre ao seu lado, na parede, um Sto. António com o Menino em, digamos, azulejo, e duas chaves penduradas. A cobrir parte do chão um tapete feito com uma minha outra velha gravata, esta de Roma, “Antiche Seterie Fiorentine”, tendo como trama e franjas um pano subtraído de uma das gavetas da cozinha. À esquerda a invenção do Bernardo, ou seja, o vaso com a hera, chamando a atenção para o seu bordo forrado com uma parte do mesmo pano de cozinha do tapete e para a sua decoração em losango, pedaço que sobrou do original bordado da toalha da mesa. No chão, um violino e o seu arco, um livro de pautas musicais, um gato que brinca com um novelo de lã vermelho e um livro aberto, vermelho e ouro, que ficou esquecido junto a uma das pernas do cadeirão que, por si só merece um capítulo especial. 

Cadeirão que comprei forrado e estofado à porca janota, como diria a Dona Lilita do Café Correia de Vila do Bispo. Atirei-me a ele, arranquei tudo, forrei a parte exterior com  o avesso da minha gravata Guy Laroche,  recheado de discos de microfibra de algodão daqueles com que as Senhoras limpam tudo o que lhes apetece pôr na cara; para o assento e as costas, que sofreram o mesmo tratamento, enchimento de algodão e tudo, usei o tecido que passo a descrever. Nos casamentos em Itália, e agora também em Portugal, é costume oferecer-se aos convidados, e também aos amigos e conhecidos que contribuem para a “Lista de Casamento”, as chamadas bomboniere, que não passam de uma pequena lembrança para assinalar o evento. Quando a minha colega da Embaixada em Roma, Berenice Rossini, se casou com um tal Ferdinando – eu gozava com ela por casar com um gerúndio -, a bomboneira que recebemos foi um saquinho de linho cheio de amêndoas de Sulmona, com uma renda e o monograma “F B” bordado, e foi desse saquinho que nasceu todo o estofo da cadeira, assento e costas, mas também os 3 naperons da prateleira e aquele do prato do bolo.

E agora só faltam poucas coisas, a saber: os óculos que a Senhora da casa deixou na cadeira, feitos de fio eléctrico, a malha que estava a tricotar, que é um pedacinho de umas calças de pijama velhas com dois alfinetes cabeçudos subtraídos da caixa da costura, e um haltere de 20 kg, escondido atrás do vaso com a intenção de, juntamente com a âncora e a roda do leme, lançar a dúvida sobre se a dona da casa será mesmo uma velha Senhora ou um marinheiro reformado. 

O remate final são as telhas, todas pintadas à mão com diversas misturas de acrílico amarelo, vermelho e branco, umas ervas que entretanto passaram do ramo de Domingo de Ramos para o telhado, e a placa gravada “Feito à mão”, em baixo à esquerda. Um dia terá uma moldura iluminada, uma abóboras no telhado em homenagem ao romance homónimo de Mestre Aquilino Ribeiro, ficando os ninhos de andorinha para mais tarde, andando eu neste momento a tentar capturar uma aranha para que, caso aceite residir na casa, me teça uma teia debaixo da mesa. 

Abraço.

Lisboa, 28 de Abril de 2016
Octávio Santos

quinta-feira, 21 de abril de 2016

Seguindo sempre e à letra Mestre Ennio Flaiano: "A felicidade é desejar aquilo que se tem", e um princípio meu, se é que alguém não o disse já antes: “Preciso apenas, e só, daquilo que tenho”, atrevo-me a balizar caminhos para outros, na esperança de redenção da incapacidade que tive para balizar os meus próprios, acabando tudo em bem e em festa, só faltando foguetes e zés pereiras.


Este mundo é estranho e pergunto-me como é que alguém que tem dentro de si o caos pode escrever com a pretensão de endereçar outros para a direcção certa na cruz dos sete caminhos ainda por cima com vozes a gritarem slogans que alguém as mandou gritar como “acredita no teu sonho e trabalha sem parar” ou “trabalha sem horário feriados e fim de semana e vais ver os frutos” porque é este hoje o senso comum que para mim é o maior inimigo do bom senso que por vezes também nos engana como quando pensamos que o automatismo do bem existe e te dá a certeza que se fizeres sempre a tua obrigação ou o que pensavas que essa fosse as coisas boas acontecem e vêm ter contigo como prémio mas depois quando sabes que morrem sete vezes mais pessoas por infecções hospitalares que por acidentes de viação ou porque se reduziram os custos das despesas com a saúde porque assim decidiu alguém que está muito acima de ti porque foi preciso desviar o dinheiro para outros canais ou para o Canal e tens o melhor ministro do defunto governo a correr no tapete ao lado do teu no Holmes Place o mesmo que fez com que um enfermeiro cuide de cinquenta e cinco doentes numa unidade de saúde do cantinho do céu apetece-te mandar o bom senso junto com a boa educação às urtigas e dizer-lhe na cara o mesmo que dirias àquele incontestado príncipe do nosso foro que afirmou que “querer acabar com os offshores é como querer acabar com a prostituição” e que “muitas vezes os offshores têm uma lógica que não tem nada de ilícito da mesma forma que pode haver prostituição por amor” que é um grandessíssimo filho de um offshore e que vá acabar mas é os seus dias no Vale (ou Quinta) das Lágrimas mas daquelas verdadeiras e não nas suas de luxo. 

Agora paro porque não era acerca disto que eu queria escrever, mas sim sobre os nossos medos e incertezas, ou porque este mundo se tornou assustador, ou porque temos medo daquilo que não conhecemos como acontece no primeiro salto de paraquedas, e por isso nos escondemos de tudo, ou pior, tudo exorcizamos, deformando assim o espelho que nos obriga a ver de nós o que não queremos ver, escondendo-nos do que na realidade conta. Mas as coisas são o que são e o destino prega-nos cada partida; o máximo foi sabermos na RTP 2 que o médico que fechou os olhos a Salazar, e lhe passou a certidão de óbito, um tal Manuel Souto, fadista e tudo, era do PCP e tinha sido mandado para a sua cabeceira em S. Bento por ordem de um Professor seu superior que, por acaso até foi Grão-mestre de uma das lojas maçónicas nacionais e, também por acaso, era o meu médico. Quem pode adivinhar ou determinar seja o que for? 

O que eu queria esta semana era alertá-los para as possibilidades que a vida nos oferece, por maiores que sejam as adversidades, ou porque os problemas se nos apresentam como montanhas intransponíveis, ou, simplesmente, porque não estamos bem connosco e não temos momentaneamente a percepção de como é fácil mudar as coisas em nosso favor. Ou então, também acontece que, sentindo-se perfeito e, como tal, com uma missão a cumprir, alguém se esqueça de si e carregue nos seus ombros o peso dos problemas daqueles que lhe estão próximos, que ama a ponto de deixar de se amar a si próprio. Geralmente estas pessoas, que também são anjos, acabam por se sentir falhadas e, mesmo continuando jovens, comecem a pensar que não valeu a pena ter vindo ao mundo, esquecendo que, com tudo o que de bom fizeram, criaram um sistema de raízes de tal maneira forte que, aconteça o que acontecer, nada as poderá já abalar, com a vantagem de em cada primavera e por milagre, o despertar seja glorioso, bastando por vezes comprar um espelho novo. 

A propósito de mudar o destino, mesmo quando este parece ter um sentido único, quero lembrá-los que, de hoje, 21/4, até 13/7, temos, no cinema Nimas, o “Ciclo do Cinema Russo” que nos dará a ver, do período da União Soviética até à Perestroyka, todas as extraordinárias obras de realizadores como Eisenstein, Bondarchuk, Konchalkovsky e Mikhalkov, para falar só destes, filmes como  Siberíade, Outubro, Alexandre Nevsky, O Couraçado Potiomkine, Ivan o Terrível ou O Tio Vânia, que vi dezenas de vezes na televisão búlgara, obviamente sem legendas ou dobragens, usufruindo da deliciosa doçura húmida da língua russa, destacando-se na minha memória, Siberíade,  por se tratar de um vademecum para como vencer dificuldades, neste caso extremas, e também porque nele estrelava   Natalya Andrejchenko, para mim, e que me desculpem Audrey Hepburn, Ingrid Bergman, Anna Magnani, Irene Papas  ou Merryl Streep, a mais extraordinária artista de cinema de todos os tempos. Se tiverem pachorra e tempo, porque há filmes que duram mais de três horas e são mais lentos que “Uma Abelha na Chuva”, imaginem como é que grandes realizadores, a quem o regime totalitário da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas encomendava obras de propaganda, não havendo como fugir ou sequer tergiversar, punham de parte toda a sua ideologia, ou a falta dela, concentrando-se na sua arte suprema de fazer cinema, que se lixem as mensagens enganosas, criando obras de uma perfeição e beleza únicas, difíceis de serem igualadas.

Não é para todos o poder fazê-lo, mas está ao alcance de todos meditar na vantagem de ter a coragem de o fazer. 

Como isto está a ficar muito pesado, didáctico e pretensiosamente encurralador, numa tentativa de vos levar onde quero, vou acabar com duas coisas ligeiras que inadvertidamente se me apresentaram na net durante a pesquisa que fiz para vos transmitir o que queria e, pior, também o que não queria, ou pelo menos não era essa a minha intenção; a primeira, a poesia de João de Deus, “Dia de Anos” (A) para todos e todas que fazem anos hoje ou na próxima quinta-feira, e estou a lembrar-me da Marta, e a canção da dupla Tom Jobim/Vinícius de Moraes, de que vos deixo letra e vídeo, “Se todos fossem iguais a você”, isto para que não percam a esperança e se levantem, mesmo que seja só para fazerem na perfeição tudo aquilo que não gostam de fazer, como aconteceu aos realizadores em tempos de Goulag. 

A)   Num comentário à poesia de João de Deus pode ler-se, assinado por um tal António
        Mendes, a seguinte sextilha:
 


Fazer anos quem me dera

e sempre na Primavera.

é assaz elucidativo

por ora estar presente

mesmo por vezes ausente
mas que ainda estou vivo.

 
Abraço.

Lisboa, 21 de Abril de 2016
Octávio Santos


 






 
 




 
 




 


quinta-feira, 14 de abril de 2016

Gosto, não gosto, muito, pouco, nada…


Gosto de me sentar para escrever depois de escolher bem a caneta adaptada ao teor do texto, verificar a cor da tinta, e certificar-me se é suficiente para o que tenho para dizer.

Não gosto de me sentar para escrever e constatar não ter nada de jeito para dizer, o que é notoriamente o caso de hoje.

Gosto de espalhar à minha frente, na mesa de trabalho, todos os jornais, revistas, recortes, notas e rascunhos que me servirão para copiar as coisas que vos impinjo.

Não gosto de comer nêsperas ao pequeno-almoço e ler na embalagem “Nisperas-Pequeños bocados de gran sabor”, quando, por insípidas que eram, só se distinguissem de batatas pela cor e pelos caroços.

Gosto de saber que a Zona Franca da Madeira não tem, nem de perto nem de longe, nada a ver com o que se passa nos outros off shores, Panamá incluído, simplesmente porque não é um off shore, e que as inúmeras empresas que lá se registam o fazem pelo clima ameno da ilha e pela Festa da Flor. De um romantismo desarmante.

Não gosto de saber que quem afirma o que reportei no parágrafo anterior, sabe de estar a mentir e que o faz por interesses pessoais. Lobo escondido a conselho do Estado.

Gosto de saber que há uma empresa produtora de videojogos - Molleindustria - que actuam como remédios homeopáticos contra a vigente idiota loucura dos tempos. Exemplos: “Tamatípico”, um tamagochi virtual que critica o trabalho precário, “Oiligarchy”, que põe a nu os meandros da indústria petrolífera, “Faith Fighter”, sobre a guerra das religiões, ou ainda “Pedopriest”, sobre a pedofilia na igreja católica. Pode-se dar ao polegar com utilidade.

Não gosto de saber que há milhões de chineses, especialmente de minorias étnicas de zonas rurais, os Miao, os Dong e os Yao, que estando à margem do desenvolvimento económico do país, estão a ser arquivados à força em arranha-céus em cidades onde não sabem viver e, por isso, votados a uma morte lenta, sem terem ao menos, para alívio do seu infinito desespero, um Mediterrâneo para morrerem ao tentar atravessá-lo.

Gosto de saber que não chegaram ainda a Portugal os vouchers de trabalho que já circulam aos milhões por essa Europa fora: o empregador vai aos correios, ou à tabacaria da esquina, e compra um voucher de 10 euros com que pagará uma hora de trabalho ao eventual trabalhador que, após a sua prestação e com o dito cujo devidamente obliterado, passa pelos mesmos locais de emissão levantar o fruto do seu trabalho que, após os descontos para a Segurança Social, para o IRS, para o Serviço Nacional de Saúde, para despesas burocráticas e para o legítimo lucro dos distribuidores, se reduz a cerca de metade. Tudo legal, como os off shores, transformando uma geração de precários numa de voucheristas, sempre rasca generation, para usar um anglicismo!

Não gosto que se ponham os meninos e meninas das escolas portuguesas a brincar ao faz de conta com as mochilas dos refugiados, e que o Senhor Presidente da República ajude a oficiar essa liturgia. Pareceu-me imoral, para usar uma palavra contida, ter de ouvir a menina Joana Vasconcelos dizer que meteria nela as suas jóias portuguesas, uns novelinhos de lã e agulhas para se entreter, esquecendo os tampax (Pocket Pearl, desta vez) para o caso de lhe apetecer fazer um lustre para iluminar o campo de Indomeni; bem os phones para ouvir música e os óculos escuros para ver o menos possível, sem esquecer uma mola da roupa para tapar o nariz que não suportaria os cheiros que reinam em todos os locais onde os verdadeiros refugiados se amontoam como animais, tratados sem respeito nem dignidade.  Acontece que a televisão nos mostra todas as desgraças, facultando-nos a banda sonora, mas não dá ainda para nos revelar os odores que, por si só, tornariam inabitáveis as nossas casas. Mas isso que importa às nossas “criancinhas” fofas e rechonchudinhas que têm as câmaras da televisão à disposição para debitarem as suas alarvidades?

Gosto de saber que se começou a escrever sobre aqueles que nos países ditos de acolhimento, estão a encher os bolsos com o negócio dos refugiados; mais lucrativo que o da droga, no dizer de alguém apanhado numa escuta telefónica. “Prophugopoli” foi o título do livro que encontrei, que trata de Lampedusa e da rede de traficâncias que daí irradia.

Não gostei de saber, pela boca de um especialista, que um dos orgulhos gastronómicos nacionais, o fumeiro, é um dos principais responsáveis pelas despesas com saúde pública neste país e pelos lucros da Servilusa. Mas vá lá um incauto cidadão repeti-lo nas feiras e feirinhas do Portugal em Directo! Traidor à Pátria seria o mínimo que ouviria.

Gostei, por falar em Lampedusa, do aspecto “gatopardesco” do Congresso do PSD: mudar tudo para que fique tudo na mesma. Desde a minha experiência búlgara que não via eleitos com 95%, mas pelo menos temo-los fora da circulação por uns bons quatro anos. A austeridade até a pachorra nos levou.

Não gostei de saber que os medicamentos que tratam o maior órgão do nosso corpo, que é a pele, não têm qualquer espécie de desconto ou merecem reembolso por parte de quem deveria tratar-nos da saúde. Como estão de moda os seguros de saúde para animais, é como se dos mesmos fossem excluídos os pescoços das girafas e as trombas dos elefantes, contemplando só os cérebros daqueles irracionais com eventual queda para a política, que não é uma espécie em vias de extinção.
 
Gostei, e partilhei, da indignação geral pela morte, por incúria médico-veterinária, da cadelinha Amélie de Maria João Bastos, que tendo sido internada numa clínica para uma destartarização com extracção dentária, acabou por morrer por motivos ainda não esclarecidos. Declarou a popular actriz que “os animais, tal como os seres humanos,  devem ser tratados com respeito e dignidade. São, e a Amélie era, um membro da família”. Entretanto foi instaurado um inquérito para apurar responsabilidades.
 
Não gostei de ouvir, após a morte do lutador português de Artes Marciais Mistas (MMA), João “Rafeiro” Carvalho, por lesões sofridas durante o combate que travou em Dublin com o atleta irlandês Charlie “The Hospital” Ward, seja o seu treinador Vítor Nóbrega - também responsável pelo Nóbrega Team – dizer que “foi uma fatalidade difícil de prever”, que “foram cumpridas todas as normas de segurança” e que “a arbitragem seguiu todos os procedimentos correctos e habituais”, seja o seu colega de equipa Filipe Catanho afirmar que as imagens que vimos do combate “são comuns” embora “possam parecer violentas” para quem não conhece a modalidade, acrescentando que os jovens lutadores “devem ter em atenção que ninguém deixou de jogar futebol quando Féher morreu”. Edificante, especialmente após o Ministro do Desporto da Irlanda ter declarado que “já tinha visto o perigo destas situações surgir há dois anos”, que “claramente existe um problema”, e que iria reunir-se com  os responsáveis da Agência Nacional do Desporto “para ver o que é possível fazer para regulamentar (A) este desporto”. Entretanto foi instaurado um inquérito (na Irlanda) para apurar responsabilidades.

Gostei muito de ter passado aqui  hora e meia a vasculhar papéis para desencantar estas coisas para vos contar, mas no fim…
 
…não gostei mesmo nada desta crónica por achar que os leitores teriam merecido muito mais, mas foi o que se pôde arranjar.
 
 A)  O MMA é uma modalidade de combate que mistura técnicas das mais variadas artes marciais, com reduzida protecção (luvas de dedo aberto, coquilha e protector bucal) e elevada violência, mas com linhas vermelhas que não podem ser ultrapassadas – cabeçada, dedo no olho, morder, puxar cabelo, beliscar, arranhar e cuspir no adversário, ataques à coluna e parte de trás da cabeça e joelhadas na cabeça de um adversário que esteja no chão (cotoveladas são omissas).
 
Abraço. 

Lisboa, 14 de Abril de 2016
Octávio Santos