quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Parte Terceira da minha expedição em busca da Liberdade na dita Avenida dela, que conta de como, entre tanta maravilha, e luxo e tanto lixo, vãs tentativas para transformar umas nos outros, e vice versa, encontrei a beleza bastando-me olhar para cima e ver varandas floridas, viradas para a Liberdade e por detrás delas os sonhos de um homem (e de uma Mulher).



Acabei a Parte Segunda a olhar embasbacado para o Elevador da Glória (sonhando com ela) que subia resfolegante calçada acima, arrependido de não ter corrido a apanhá-lo(a). Só que tinha prometido contar-vos toda a Avenida de fio a pavio e, como cumpro todas as promessas que faço, não vos podia deixar pendurados só porque me daria muito prazer subir até onde ele e o destino me levassem, mesmo que não fosse à glória.  

Mas fiquei cá em baixo e, como tudo começa pelo princípio, no nº 1 está o Palladium que tem no seu ventre confuso um Snack Lounge, um Rent a Car e um Real Transfer, no 3, no mesmo belo prédio cheio de consultórios médicos e de um Advogado, está a Sun Avenida - Energias Renováveis de Portugal, Lda. e a OPTEC - Cinema e Som. No 5 de notar apenas a Ginjinha Rubi e um recanto onde se vendem os Jogos da Santa Casa, no 7 a continuação da enorme confusão que reina dentro do Palladium e no 9, um prédio moderno, feio, com ar de abandonado, a loja fechada, sobrevive mais um recanto onde se vendem jornais e revistas e um Cartório Notarial num dos andares. Depois, o nº 11, mais um edifício pombalino pobre e sem cor, que aloja a Clínica de Diagnóstico Dr. Passos Ângelo, Lda., uma instituição privada positiva no sistema de saúde deste país em saldos (como tudo na Avenida), um balcão BES que promete ser Novo, a Médis e, na loja, a Foreva, calçado português para consumo médio/baixo interno, com um vitrinismo atrasado de meio século como muitas outras lojas na Avenida, havendo muito pior. No 15, um outro pombalino, este menos pobre, cor de rosa, as lojas estão ocupadas por uma Agência de Viagens El Corte Inglès e pelo Hippie Café - Convenient Store, que tem à entrada um pirata tamanho natural em papier maché, que de tão decadente e escalavrado não convida a entrar ou será que é mesmo disto que o turista gosta, levando consigo, deste país de piratas, junto com uma banana e uma cerveja, um very tipical souvenir? Recuso-me a acreditar e penso mesmo que um qualquer gabinete da CML se deveria ocupar destas indecências, impedindo-as. Podem dizer que não se pode, que vivemos em democracia, mas num país em que se fez uma lei que me proíbe de colaborar, mesmo pro bono, com qualquer entidade ou organismo público sob pena de perder o direito à reforma, lei  que o Dr. Bagão Félix classificou de aparentada à eutanásia, não pode uma autarquia legislar contra a poluição visiva da cidade? No 15/19, outro pombalino, este de azulejos castanhos e em reabilitação; em baixo o Calçado Guimarães (aberto 24 horas), idêntico à Foreva mas bastante pior, saldando saldos, e a loja fechada e suja que foi da Halcon Viagens. O seguinte é idêntico, exteriormente bem conservado nos andares visíveis já remodelados pelas BBON e CASAIS para ser o futuro Hotel Bessa que já anuncia contratar pessoal de hotelaria. Menos mal. Um jovem dirige-se a mim de mão estendida “excuse me, I’m hungry, please”, respondo-lhe sem o olhar enquanto finjo que escrevo no caderninho, “I’m working in this moment, sorry” e sigo caminho apressado, ocupado e nada “hungry” porque já tinha o pequeno-almoço no bucho.  

No nº 49, na esquina com a Travessa da Glória, um moderno edifício verde linear e sem alma, todo Visionlab em baixo - os portugueses, para além das outras doenças todas, são agora também míopes, presbitas, astigmáticos ou amblíopes -, em cima a Svenson – Hair Specialist, a Embaixada de Malta, a Willis, corrector de seguros, a Main Side Investement, SGPS, SA, a Masterjet - the way it should always be -, e a AMP/ADD, Management Partners. Digamos New York ou a City londrina. No 59, do outro lado da esquina, num pombalino pequeno mas interessante, com grandes mansardas, a Baiana, Pastelaria Leitaria, no 65 curioso edifício amarelo gema de ovo, antigo, pouco português, restaurado, que afixa uma lápide indicando que ali nasceu o pintor Carlos Botelho em 1899, lápide (quase pedra tumular) que ostenta o seu retrato e a data da morte, 1982. No 67 está aquela que eu chamo a loja dos horrores que vende, para além da mítica marca de calçado Doc Martens que tanto agradou (e continua a agradar) a sucessivas gerações de punks, góticos e afins, incluindo motards, tudo aquilo que faz parte do enxoval próprio de jovens e menos jovens que escolheram esta via de expressão cultural que se revela no próprio corpo e seus atavios. As montras atraem a vista do passante pela profusão e confusão de artigos expostos, anéis, amuletos, brincos, pins, porta-chaves, cinzeiros, pulseiras e penduricalhos vários, mas também outras coisas que representam um mundo subterrâneo - se eu fosse padre diria satânico ou das trevas - privilegiando a morte e todas as formas de representação do além-túmulo;  a peça que mais me chamou a atenção foi a estatueta de um esqueleto cantor feminino com soutien, xaile e microfone, uma horrorosa “beleza”  fadista kitsch. Entrei para rever o móvel que está à entrada da porta à sua direita e ocupa toda a parede; pena que esteja cheio de “lixo” porque é talvez uma das preciosidades escondidas desta Avenida. Trata-se de um enorme móvel/biblioteca completamente entalhado de alto a baixo, magnificamente esculpido e que, no meu entender, tem hoje um valor superior a todo o edifício que o acolhe. Lembro-me de o ter descoberto no fim dos anos 50 e de ter falado sobre ele com o proprietário da loja, que então vendia acessórios para automóveis (há lá ainda restos de espelhos retrovisores e maçanetas de mudanças), tipo “bolantes de pau e conta boltinhas para emeguebês guetês”, tendo-me ele afirmado que alguém já lhe tinha oferecido mil contos mas que não o vendia por dinheiro nenhum. Quem salva esta preciosidade? Eu, se fosse o actual inquilino, transformava o local em curiosidade turística, como se fosse um museu vivo com uma peça única - O Único Museu do Mundo com uma Só Peça! -, bastava uma limpeza, um cicerone que soubesse tudo dizer sobre o objecto exposto e a arte da talha em Portugal, umas mesas,  umas cadeiras  e poucos mas bons vinhos exclusivamente portugueses,  para animar os visitantes e promover o que temos de bom; era negócio, mas eu continuo a ser um “empreendedorista” sem cheta (xeta é, no Brasil, um beijo mandado de longe). Abençoado dicionário! 

No 67-B está um outro curioso edifício, como o 65, este já mais português, muito bem restaurado e pintado de vermelho escuro, com escritórios para alugar e um Notário já instalado; na esquina com a Rua da Conceição da Glória abriu agora a COS, loja de trapos a preços abordáveis mas com arranjo interior e vitrinismo dignos daquelas que vendem coisas muito mais caras; trata-se da linha mais alta da sueca H&M.  

Na outra esquina o Edifício Espaço Liberdade no nº 69, outro moderno e linear à Siza, com a loja ocupada pela David Rosas que ostenta nas suas luxuosas montras aquilo que há de mais tentador em ourivesaria, joalharia e relojoaria, incluindo os prestigiosos relógios da Officine Panerai, que mais não são que a redescoberta recente (estava eu em Roma) dos relógios Luminor usados pela tripulação dos submarinos italianos. É como se alguém transformasse tractores agrícolas em automóveis de prestígio e a moda pegasse: - Comprei um John Deere turbo intercooler, hibrid plug in, que é um espanto! – Se visses o meu New Holland Suv 4x4, diferencial autoblocante e caixa sequencial no volante, calavas a boca e até te passavas! No 75, um pombalino decadente e vazio nos andares, excepto talvez de consultórios e da Dimofel no 1º andar. Em baixo a Via Liberdade – Sport and Classic Cars, que não passa de um Rent a Car e a Cervejaria e Restaurante Quebra Mar. No 85, na esquina da Praça da Alegria (quando a sede da FPF era aqui ainda havia um grupo de rapazes a correr na relva sem agentes que nos dava algumas alegrias), aí sim está a Dimofel – Electrónicos, Lda., onde ninguém subia por aquelas escadas sem encontrar o que queria e, muitas vezes, acabando por comprar aquilo que nem sabia existisse, mais médicos, o LX Corner Hostel, um balcão da CGD e a Pastelaria Lusitânia. No 101/103, um belo pombalino azul água, onde está a Ideal Tower, a Pronoivos - quem continua a casar?-, e a Gilles, Fine Jewellery com as montras cheias de relógios Franck Müller, de Geneve, Master of Complication.

 
No 105, ao olhar para cima para ver quem lá está instalado, deparo com todas as varandas do segundo andar esquerdo floridas (imagem do texto) e, curioso, vejo que pertencem à Central Models, Agência de Modelos (25 anos a criar e a realizar sonhos), que é a agência da Sara Sampaio e também minha, modestamente. Subo e falo com o António Romano que tem a gentileza de me expor longamente e com paixão o seu projecto Eva Dream, já objecto de um seu livro, o qual consiste “só” em transformar Portugal num país florido, e das suas varandas que, como ele diz, não estão viradas para a Avenida da Liberdade, mas simplesmente para a Liberdade. Tenho a certeza que o António vai levar para a frente o projecto do seu sonho, muito facilitado por ter a Emília a seu lado. Esquecia, e é importante, que no 105 está também uma Sociedade de Advogados, obviamente sem flores, uma Foreva menos confusa e a Pastelaria Pomarense. No passeio, uma Senhora, entre os 30 e os 40, chora enquanto fala ao telemóvel e ouço-a dizer, entre soluços, ao seu interlocutor: - Mas o que é que tu queres que eu faça se ele exige que seja eu a entregar a carta de demissão? Diz que é melhor para mim! Vidas de hoje, e menos mal que não estamos na faixa de Gaza, digo eu que vejo sempre tudo pelo lado positivo. 

No 111 está a Mont Blanc da invejada estrela branca, quase tão difícil de alcançar como o cume do homónimo alvo monte alpino, só acessível aos João Garcias da freenança com todo o equipamento em ordem e sólidos apoios nos campo base. Em 2005, em Xangai, uma colega comprou dez canetas “garantidamente originais” por 60 euros. No 127 o moderno e bonito edifício do 5 estrelas Sofitel que atrai o apetite dos passantes com os sugestivos petiscos do cardápio do Restaurante adLib. Ao lado a Dara Jewels. No 129, um prédio novo de linhas direitas forrado de pedra, tem em baixo o Avenue Restaurant Bar Enoteca e a Boutique dos Relógios Plus. Do 131 ao 151 mais um belo e imponente exemplar pombalino, bem restaurado, cor de rosa; nos andares a Eaglestone, a Cushman & Wakefield, a AIG e, graças a Deus, mais uma Sociedade de Advogados que, pelo nome dos patronos, é ibérica. Em baixo as impecáveis lojas da Hugo Boss (casa fundada em 1923 e fornecedora exclusiva dos uniformes nazis) e da Ermenegildo Zegna.  Ao passar, veio-me à memória que naquele edifício, a cavalo entre os anos 50 e 60, existia um pequeno bar, tão pequeno que o balcão estava quase encostado à porta de entrada, cujo proprietário designava as bebidas que servia, bem como tudo aquilo de bom que lhes acrescentava, com o asneiredo mais soez que a sua inventiva empresarial lhe oferecia. Lembro-me que passava por lá com colegas da minha idade, exclusivamente machos, para nos acanalharmos com a linguagem corrente daquele local que hoje seria considerado  cult.  A bebida interessava pouco, até porque devia estar no limite do potável, mas o facto de entrar, pedir a mistela e ouvir nomear os acessórios a escolher, tudo em vernáculo, era o máximo da transgressão para putos de 16/18 anos. Há quem me ache atrevido na escrita e de, por vezes, derrapar para fora das linhas do aceitável mas, neste espaço dignificado pela imagem da Suggia, pela douta citação latina e pelo bom gosto e elegância de quem o idealizou, não me passa pela ante-câmara do cérebro repetir, escrevendo-a, uma só palavra das que disse e ouvi naquela que era uma “capela” iniciática da asneira livre, lembrando-me que “ a escrita fica quando um dia a palavra se retirar”. Será que sou o único velho que se lembra da existência deste local? Espero ansiosamente comentários pertinentes. 

Estamos na esquina da Travessa do Salitre e, olhando para a esquerda, vejo a entrada do Parque Mayer com as suas torres, entre Manhattan e San Gimignano, mas fica para uma próxima ocasião, até porque não é lícito violar um “santuário” quando se anda a fazer turismo de mochila às costas. 

Abraço. 

Lisboa, 14 de Agosto de 2014
Octávio Santos