quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Divagação pseudo filosófica do cronista, que se convenceu que podia falar com elevação do tempo neste tempo em que não se tem nem tempo para ir à janela ver como está o tempo, que chova ou faça sol não é por aí que as coisas se vão compor. Só chovendo picaretas, dizia o meu Avô quando lhe aumentavam a dízima


Domingo (escrevo sempre Domingo de manhã), dia de Finados, céu nublado, fresquinho lá fora. A Manuela pergunta-me como é que está o tempo, e eu com a preocupação de não ter assunto para o texto do blogue, respondo: - Sereno Variabile, o que nem sequer é mentira. “- Nem foste à janela, respondes para me despachar. A propósito, tens assunto para o blogue desta semana?” Com outras coisas na cabeça e muitas para fazer, respondo que se calhar esta semana não vou escrever nada porque, para além de assunto me falta o tempo. Eureka! Cá está o assunto, simples, aqui à mão de semear: o tempo! Simples, é como quem diz! Surge o assunto e o berbicacho ao mesmo tempo, pois que simples não sendo, antes pelo contrário, fico com uma criança nos braços sem saber sequer como é que se muda uma fralda. Acabo sempre por me meter em becos sem saída.
 
Como ando a ler dois livros ao mesmo tempo, um sobre Giordano Bruno, não propriamente uma biografia, de Michel White, intitulado “O Filósofo Maldito”, e o outro de Umberto Eco, “A Misteriosa Chama da Rainha Loana”, logo - e para alguma coisa descobri Gianni Rodari e os seus “binómios fantásticos”-, associei a frase do defensor do infinito cósmico “O tempo tudo tira e tudo dá” ao facto de o herói (Yambo) do livro do Professor de Bolonha ter tido, não um, mas dois AVC’s que lhe tiraram a memória autobiográfica, que é afinal a trama que sustenta o romance, temendo eu que o tempo me tire, por acidente amigável e veladamente acenado de longe, a oportunidade de dele falar, agora que se me apresentou numa bandeja.
 
Mas quem sou eu para falar do tempo depois de Parménides ter ousado o tema, de Platão o ter desenvolvido, de Santo Agostinho, no Livro XI das Confissões, se ter interrogado:
 
- O que é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém me perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei!
 
E só com esta de Santo Agostinho já eu tinha uma escapatória para não falar do assunto, não necessitando da ajuda da profundidade com que Heidegger, Kant, Hegel e Espinosa, para só nomear estes, o trataram. Mas como tenho sempre a fortuna de receber ajuda quando a necessidade se apresenta, ou de anjos ou de outros seres não terrenos, ao vasculhar hoje as minhas gavetas dos papéis na tentativa de encontrar qualquer coisa que me ajudasse, dei com um A4 amarelado batido à máquina, a que não mudo uma vírgula, e juro que, desta vez, não estou a faltar à verdade:
 
«Para Deus mil anos são como um dia, e um dia é como mil anos”. Como poderemos definir o tempo e dar uma ideia exacta do que seja? Há dias que correm céleres como os relâmpagos, traçando sinuosas linhas de fogo no espaço. São os dias da mocidade. Outros há tão longos quanto aqueles da Génese. São os dias da reparação e de expiação da culpa. Há horas que, de tão rápidas, nunca são presentes: são sempre passadas; porquanto, logo que percebidas, já não são mais, tinham sido, foram… Essas horas chamam-se saudade. Horas há tão penosas em que a vida nelas vividas é um pesadelo do qual parece jamais se acordar; são as horas do desengano. Concluo, portanto, que o tempo é uma abstracção, uma fantasia criada pela nossa própria mente. O tempo está em nós mesmos e não fora de nós como supomos. Nós o forjamos consoante as transformações e as emoções por que passamos. A nossa matéria se transforma continuamente sob a influência de leis naturais: dizemos, então, que envelhecemos por ordem do tempo. Recordamo-nos de factos que nos impressionaram e damos a isso o nome de passado. Aspiramos a um bem que ainda não alcançámos e, daí nos vem a ideia de futuro. Quando sonhamos, embalados na magia do Amor, a vida torna-se leve e o nosso ser diáfano. Não percebemos o jugo da matéria, nem o peso da atmosfera terrena que nos envolve. Quando, porém, suportamos as consequências amargas dos nossos erros e das nossas fraquezas, a vida transforma-se em fardo cujo peso se nos afigura insuportável. Daí a relatividade do tempo. De facto, e realmente, não existe o tempo tal como imaginamos. Não há passado, nem futuro. O que há é o presente eterno onde a nossa alma imortal realiza o objecto supremo da vida mediante o influxo da lei incoercível que a rege: a evolução.»
 
Mas mesmo a quem, como eu, não tem nada para dizer, mesmo não vindo muito a propósito, seja permitido lembrar que o ano passado se celebrou o 50º aniversário do lançamento da revista de pensamento e acção “O Tempo e o Modo”, publicada pela primeira vez em Janeiro de 1963 e que foi, na evocação de António Alçada Baptista, “expressão do nosso mal-estar em relação à sociedade em que vivíamos”, tendo Pedro Tamen, outro dos seus fundadores, definido na altura o seu projecto com estas palavras: “A acção começa na consciência. A consciência, pela acção, insere-se no tempo. Assim, a consciência atenta e virtuosa procurará o modo de influir no tempo. Por isso, se a consciência for atenta e virtuosa, assim será o tempo e o modo.” Como em só 50 anos se perde a vontade de lutar e de participar, resta para mim um mistério, mas como ouvi esta semana, numa reunião séria, alguém sério afirmar que é possível inocular, durante a realização de uma tatuagem, uma droga que induza jovens ocidentais a irem lutar pelo Califado, não me admirava se nos estivessem a dar pastéis de nata com químicos castrantes em qualquer padaria da moda.
 
Vêm em minha salvação dois contemporâneos que me encarreiram nos justos carris: o filosofo italiano Mauro Maldonado que nos diz que “o tempo só escraviza quem não sonha”, e desta gostei como devem calcular, e aquele já de mim mais próximo Jorge Jesus que, após a desastrosa pré-época do glorioso e da magra vitória por penalties sobre o Rio Ave na final da Super Taça, nos descansou com um lapidar “temos de dar tempo ao tempo”. E foi então que eu desci da alta esfera onde o conceito de tempo é tratado há séculos, sem se ter ainda chegado ao menos a uma definição, quanto mais a um acordo universal, para me socorrer do mais fácil, comezinho e corriqueiro a que as pessoas normais se agarram quando não têm mais nada para dizer, isto é, o tempo.
 
Ainda ontem, ao entrar no ascensor com a minha vizinha japonesa, que tem, tal como ultimamente o António Costa na Quadratura do Círculo, a expressão de um gato egípcio que me recordo de ter visto no Museu do Vaticano, aliada à mesma loquacidade, esbocei um sorriso e balbuciei: - It’s hot today, isn’t it? que não tendo provocado qualquer reacção me levou ao atrevimento de voltar à carga: - What’s the weather  like in your country? com o mesmíssimo resultado. Não tendo eu qualquer conhecimento sobre a cultura ou hábitos nipónicos, tirando uns incipientes haikus experimentais, e longe de mim fazer qualquer tentativa para entrar dentro da minha companheira da fugaz viagem, temi que ela estivesse pensando: - Esgotado o truque do tempo, o velho agora vai-me perguntar o que é que eu faço esta noite ou qual é a medida do meu soutien e eu gelo-o com um sorriso amarelo! - e eu aí calei-me como um peixe balão daqueles que envenenam qualquer cristão, mas que a eles os fazem gozar que nem um tripeiro diante de uma francesinha, sem sequer esboçar um “sayonara” e jurando a mim mesmo que não vou usar, agora que vai chegar o inverno, na próxima eventual viagem com a enigmática cidadã do Sol Nascente, uma que já tinha fisgada: - It feels so chilly outside! - o que seria uma estupidez, para além do mais, inútil, pois nem sequer tenho lareira em casa.
 
Arquivada esta tentativa de utilização dos meus fracos conhecimentos da língua inglesa num assunto que não requer muitos “skills”, reduzo-me à facilidade interlocutória que o tema proporciona a qualquer um de nós, e vou por aí mimoseando quem encontro nas minhas caminhadas citadinas com sintéticos e cirúrgicos chavões meteorológicos, quando o tempo é curto, e com algumas mais articuladas considerações quando o tempo o permite, na mesma linha das intervenções dos nossos deputados em S. Bento.
 
- Que merda de tempo este!
 
- No meu tempo o tempo não era assim!
 
- Eh pá, essa gripe é fruta do tempo!
 
- Sabes que as temperaturas estão a subir por causa do degelo dos glaciares na Terra do Fogo.
 
- Sabes que as temperaturas estão a descer pelo frio dos icebergs resultantes do degelo dos glaciares na Terra do Fogo.
 
- Isto tornou-se um clima tropical, já viste os periquitos verdes nos jacarandás de novo floridos nas Avenidas Novas?
 
- Um gajo já nem sabe como é que se há-de vestir de manhã!
 
- Estou todo molhado, saí de casa sem chapéu-de-chuva e com esta chuva molha parvos… (já me tenho perguntado porque é que quando digo esta estão todos de acordo).
 
- Francamente, querias bom tempo na eira e chuva no nabal?

- Desde que andei na Avenida da Liberdade, já houve duas cheias; passei por lá e quase não a reconhecia. O país está realmente a mudar! Pelo menos na Rua das Pretas!
 
- O chato é que com a indefinição das estações, passas do ar condicionado ao aquecimentode um dia para o outro.
 
- A falar dos meus livros à porta da barbearia em dia de chuva, um taxista entrou numa poça a toda a velocidade e encharcou-me dos pés à cabeça. Diz o barbeiro: - Este cabrão nem o reconheceu como nosso autor preferido!
 
- Isto é mas é castigo de Deus!
 
E fico-me hoje por aqui porque, para além de não ter capacidade para vos falar do tempo, falta-me tempo  para continuar a falar do tempo. Tenham um bom tempo este fim-de-semana, já que o S. Martinho está à porta e, nesse dia, o tempo é garantido. Felizmente ainda nos restam algumas certezas. E se chovesse?
 
Abraço.

Lisboa, 6 de Novembro de 2014
Octávio Santos