quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Parte Segunda da crónica da minha aventurosa viagem de desce e sobe a Avenida da Liberdade, com incursão nos Restauradores, a qual, se não fosse pedir muito, e a posteridade assim o viesse a decidir, poderia entrar de pleno direito na História dos Descobrimentos.


Recordo que a Parte Primeira desta crónica se ficou pelo nº 170, sede do PCP, acabando com um “ataque” húngaro que me levou a divagar sobre assuntos meus antigos que, estranhamente ou não, tiveram a intervenção do prestimoso grupo de empresas que tendo  vivido um século sob a asa protectora da Terceira Pessoa da Santíssima Trindade, se vê agora arrastada na lama,  não podendo voltar a brincar aos pobrezinhos na Comporta, sendo obrigada a ir brincar ao riquinhos no Brasil, onde a Odebrecht já acolheu parte da prole. Quem é amigo, quem é? 

Mas vamos lá continuar a descer a nossa Avenida deparando com um mosaico tipo bizantino - Domus quieta, Facultas certa - no nº 166, magnífico edifício que alberga a Eduardo Beauté, que massaja, penteia, desenruga, depila, bronzeia, drena, maquilha, hidrata, esfolia, lipoaspira  e embeleza as Senhoras alfacinhas que, ao de lá sairem, iluminam os cúpidos olhos machos (e não só) de patrícios e turistas. Está lá também a Chiado Editora, meritório agente de divulgação de cultura que acaba de publicar o Volume V da Antologia de Poesia Contemporânea - Entre o Sono e o Sonho -, que inclui no seu Tomo II uma pequena poesia da minha autoria. No 164, outro belo edifício dos que restam da Avenida pré-metropolitano, está a Rimowa, malas de viagem de luxo com garantia germânica. O que há de pior, em termos arquitectónicos, da antiga Avenida mora no nº 158; está lá a Agência Abreu, pioneira do turismo em Portugal desde 1840. No 144 temos mais um moderno “vidrão”, o Edifício M.C.B., aquele do hipopótamo, que se salva pelo belo baixo-relevo em azulejo que ostenta. Tem lojas: I Pinco Pallino, roupas italianas para crianças (passei lá dois dias depois e já se chamava Baby Liberdade, como este país muda!), Delta Q (o Nespresso de Campomaior), Carolina Herrera, de Portugal para a Venezuela e volta com amor e classe, Purificación Garcia, espanhola dois degraus abaixo, e ainda uma agência de casting; Figurantes televisivos…Casting cinema. Nos 138/142 está agora o “The Fonte Cruz Lisboa Hotel - Autograph Collection -, cinco estrelas num muito bem recuperado edifício antigo. Em baixo tem a A.Lange & Söhne Glashütte I/SA, vistosa e complicada relojoaria alemã, casa fundada na Saxónia em 1168 e renascida em 1990 após a queda do Muro de Berlim, que tivemos todos as esperança fosse o último: Gaza, Cisjordânia, Ceuta, Melilla, México e não sei quantos mais estão aí para nos desmentir. No 136, mais um belo edifício, está a André Ópticas e a Gatewit, que “lidera o Top do capital humano em Portugal”, frase que, com as minhas limitações, não sei traduzir, e que é também “uma plataforma de compras públicas”, idem.  

Um monstro moderno, depurado em estilo Siza Vieira, ocupa o nº 110, e lá estão a Massimo Dutti, a Mango e a H.E. by Mango (Inditex strikes again), a Hiskox, a Regus e mais uma Sociedade de Advogados. No 108,  outro tipo Siza na esquina com a Rua das Pretas, com alpinistas a furarem o mármore das fachadas, está a Clínica de Nutrição de Lisboa, a ES Property e a Michael Kors. Na outra esquina, no 102, está o belo e elegante pequeno edifício onde a Maria João Bahia fabrica, expõe e vende a sua sofisticada joalharia: uma beleza intemporal. Nos 92/100 está o agora designado Edifício Tony Miranda, com os seus azulejos azuis, em honra do estilista que veste as Ivanas Trampas e os Flávios Brilhadores da antiga Capital do Império, que subiu aos andares superiores, private clients, para deixar a loja à Miu-Miu que mais não é que a “Prada dos Pobres”. Crise a quanto obrigas! No 90 temos um edifício irmão daquele do Tony Miranda mas com azulejos verdes. Em baixo, em saldos como quase tudo o que são trapos na Avenida, está o Zadig & Voltaire, vindo-me à cabeça o slogan para a segurança nas nossas praias que o Mário Soares teria tentado impingir à son ami Mitterand: “Il y a mer et mer, il y a aller et Voltaire”. Quanto ao Zadig não sei quem era nem quero saber. No 88, Villas-Boas, Corrector de Seguros, no 86, ACLSI (IT Solutions), no 84, Unibanco, Vetop International (seguros espanhóis), Proccordena (o quê?) e CBS (mais seguros). Dos edifícios não guardei memória. Será que não tinham nada de particular ou que eu já estava cansado? Vou lá voltar para verificar. Se era cansaço, tive um sobressalto com o horror arquitectónico do Edifício MAPFRE que, talvez por vergonha, retirou as letras gordas da fachada do nº 40. 

No 38, atenuado (pouco) o mau gosto da arquitectura, encontrei a primeira pedinte (os húngaros eram profissionais), sentada no chão em cima de um cobertor que lhe tapava as pernas e que dividia com uma cadelinha e um chapéu alto como recipiente para as esmolas: - Estou a pedir para a minha menina! Despenteada, suja, gorda, com as mamas apoiadas na barriga, dir-se-ia um corpo entornado no passeio. Atrás dela a Porsche Design de um lado e a Elisabetta Franchi e a Gant do outro. Ao centro, subindo umas escadas, entra-se para um pátio arejado e ensolarado, do qual se tem uma magnífica visão da Igreja de S. José que dá para o Largo da Anunciada. Lá dentro a Stivali e o Holmes Place - One life. Live it well -.  Ao sair reparei num interessante painel moderno de azulejos azuis retratando uma cena no Passeio Público. No nº 36, edifício moderno e linear, nem carne nem peixe, temos mais seguros, a MetLife, e o enorme espaço fechado da Aeroflot; espreitei pelo vidro sujo onde alguém escreveu “FUCK”, e lá estava o logotipo pomposo e austero da transportadora soviética, no alto de 3 ou 4 degraus. É sempre necessário fazer um esforço para chegar ao alto. Não tem nada a ver, mas para subir ao trono que está na Sala VIP do Aeroporto de Bata, reservado ao Presidente da Guiné Equatorial, também é necessário subir 3 ou 4 degraus. Se não acreditam perguntem ao Dr. Luis Amado, ex-Ministro dos Negócios Estrangeiros e agora Presidente do Banif, que estava lá comigo. O edifício acolhe também os TACV – o prazer de viajar bem -, o que eu lhe concedo com toda a justiça, e a Penhalta, gosto espanhol para noivas e noivos portugueses. 

No nº 28 está o Hotel Heritage Lisboa, uma boa recuperação do edifício que faz esquina com o Largo da Anunciada, e aqui a vista foge-me ao longe para o Ascensor do Lavra; esta minha mania dos ascensores de Lisboa! Nos 20/24 fica o palácio onde está instalada s sede da EPAL. Águas livres por quanto tempo? Se o Arnaut sopra ao Moedas que a Goldman Sachs exige a privatização é como se já estivesse feito. No dia em que o patrão de ambos, e também do saudoso António Borges, comprou 2% do BES, a Moody’s tirou Portugal do caixote do lixo. Será que ninguém entendeu? No velho, feio e decrépito prédio com o nº 18, uma tabacaria com produtos decadentes e empoeirados para turistas, no 12, edifício de bela traça em recuperação. Tudo fechado. No 1º andar, as bandeiras das portas das varandas ostentam estes dizeres: BFB - Banco Fonsecas & Burnay. No 10 apenas o Focus Group - one stop solution. Já desisti de perceber. Do 4 ao 8 o velho Condes com a sua fachada única do Arquitecto Raul Tojal, agora Hard Rock Café. Progresso? Na outra esquina da Rua dos Condes são já os Restauradores, ou seja, fora dos limites da minha viagem, mas senti o impulso de passar a fronteira, quase uma obrigação, como se a liberdade tivesse necessidade de ser restaurada.

Entro então nos Restauradores e a primeira loja na esquina, no nº 46, é a Roca Lisbon Gallery, que expõe a sua produção de sanitários nas montras e que nos últimos dias nos pasmou com a “Sanitofone”, pequena orquestra cujos instrumentos são sanitas, bidés e urinóis, numa tentativa de dar um cheirinho à música portuguesa. Ao seu lado, para a Rua dos Condes, está o Cinema Odeon (quantos filmes de capa e espada!), que ainda anuncia revista de gargalhada e cujo edifício histórico tudo indica irá acolher as Galerias Lafayette, futuro único concorrente do El Corte Inglès. No 47 o tradicional Lourenço & Santos, tão agarrado à tradição que as suas montras são difíceis de superar em qualquer cidade israelita ou ghetto europeu. Saldos de 30 a 50 %, que se chegassem aos 90 talvez me tentassem. Nos andares de cima a POAO – Investimento Imobiliário (bilingue, em mandarim), a Sociedade de Turismo e Diversões de Macau, SARL, e a inevitável Sociedade de Advogados. No 48, um prédio triste com azulejos castanhos, ressalta o vermelho vivo da Viva, que mais não é que aquele do Continente. Do prédio contíguo, 53/55, apenas tomei uma nota: desabitado, um nojo! Por contraste afixa “Mil sorrisos” prometidos pelo Millennium BCP. No 57, edifício que só se pode dizer que é grande e está a ser restaurado pela UON - Imobiliária, tem na loja a Note! que vende livros, publicações, presentes, gadgets, etc... . Os CTT ocupam o nº 58, e  agora, para além de banco e Loja do Cidadão,  também vendem livros, publicações, presentes, gadgets, etc..., arriscando-se o utente que apenas deseja comprar um selo, a ser  pressionado para levar também um vigésimo da  Lotaria da Santa Casa. Ao seu lado tem a “Cone ou Copo!, gelataria e iogurteria de fabrico artesanal, cujo nome convém soletrar com atenção, nada de disparar para o grupo de amigos e amigas cansados de descer a Avenida e desejosos de se refrescarem: - Vamos à Conocopo! 

Atravessando a Travessa de Santo Antão deparamos com a enorme Servejaria (alguma coisa tinham de inventar) que anuncia “Leitão da Bairrada - Assado aqui”. Pobre animal que desce vivo da Anadia e da Mealhada, ainda na infância,  para ser aqui assado e bebido com serveja, por nacionais e turistas que são atraídos pelo “Bairrada's Suckling Pig”. Turismo, a quanto obrigas! No 65 pontifica a Tabacaria Restauradores, outra a fechar em nome da dignidade da Avenida, pela qual se sobe ao “Good Morning Lisbon Hostel”. Nos 66/68 está o Santander Totta (junto consigo somos melhores) em edifício falso pombalino pobre, no 70, em idêntica construção, a Alfaiataria J. Gomes dos Santos, o máximo em vitrinismo judaico-cristão de fins do século XIX, a Tabacaria Quintamar, Lda, menos má que as outras duas a que acima me referi (com uma limpeza escusa de encerrar), e uma loja fechada cujo aspecto exterior revela a mais completa falta de respeito pela Avenida e pela cidade, um verdadeiro tugúrio indigno do país turístico que realmente somos, e onde nem tudo deveria ser permitido. Mas quem fiscaliza um caso menor como este se não se fiscalizam coisas muito mais importantes? O 78, um pombalino com azulejos azuis, tem no último andar o Imperial - Chambres/Rooms, no 2º andar o Restauradores Apartamentos e, em baixo, a Vitaminas, a Money Exchange by Munditransfer e a Babock & Wilkox - tratamento de águas. No cantinho, o Pinóquio, casa de brinquedos no meu tempo de menino e agora restaurante e cervejaria (com C), onde se come o melhor bife do lombo (pica-pau) da Baixa de Lisboa. Solto, dando as costas à rua do Jardim do Regedor (por onde anda o regedor do meu Benfica?), o belíssimo quiosque que alberga a Agência ABEP, a precisar de restauro ou, pelo menos, de uma limpeza e arrumação. Apesar da tentação ser grande não entro na Rua 1º de Dezembro embora esta república precisasse também de ser restaurada. Sirvo-me da passagem subterrânea para atravessar os Restauradores, e já tenho um velho nas escadas a pedir uma esmolinha com a mão que segura o copo a tremer vistosamente, passo por muitas enxergas, óbvios dormitórios dos “sem abrigos”. Um Homem (ainda?) descansava no meio da mais incrível confusão de coisas sujas. Estive para lhe perguntar se não de tratava de uma instalação artística e que ele estivesse à espera dos fotógrafos para a imortalizar.  Tudo, a escada, o velho mendigo, os trastes por terra, o nicho do Homem,  cheiravam a urina retardada. O Turismo de Portugal (parabéns pelo Óscar!), deveria proibir os turistas de atravessar os Restauradores por baixo; é que por cima está quase tudo bem. 

Do lado de lá o Avenida Palace que tem apenas para este lado a porta nº 9 para a saída do lixo e a entrada dos empregados; tudo compatível. Nos baixos do mítico hotel lisboeta, nos 1/3, está a Calzedonia/Intimissimi, íntimo para Senhoras, a bom preço (vírgula essencial), no 4 um Espaço Emprego – deveria fazer-se um estudo sobre as expressões faciais dos utentes, ou contratar alguns dos palhaços que todos os dias nos contam histórias que, por inverosímeis, dão vontade de rir -, e a Money Exchange & Transfers, no 8 a Geladaria Veneziana, de Luca Giovanni, Herd, que há anos deixou o amplo espaço onde refrescávamos os nossos passeios domingueiros de verão na Avenida, para se meter neste cantinho escondido que continuamos a frequentar. No enorme edifício decadente no nº 13, um grande café, o Young Liberty, que nada tem a ver com Lisboa ou, pelo menos, com aquela Lisboa que todos gostaríamos de ter; ou estou enganado? Ao seu lado a Geostar Turismo. No 4º andar a Residência Restauradores c/elevador, no 3º um néon anuncia “Fios para Tricot - L.Neto Raposo, Lda, - Frabricantes”, no 2º, fazendo fé na lápide, começou a funcionar em 1925 aquela que foi a primeira sede da Sociedade Portuguesa de Autores. No nº 15 o Bar Pirata, onde comi a minha primeira chamuça acompanhada do inevitável Pirata, bebida da casa, tipo Eduardinho, o Express Foto Sport (outro nojo inadmissível) e a ampla Taverna Imperial a atrair turistas esfomeados e sedentos para a sua esplanada. Depois, o Éden Teatro, também do Mestre Cassiano Branco, que viu encerrar a Loja do Cidadão e tem agora um lençol da Jones Lang LaSalle a oferecê-lo a quem der mais, seja russo, chinês, qatari ou usbek; Portugal é um país de acolhimento afável e fidalgo, e com os complexos que ficaram da Pide/DGS não faz perguntas nem aos banqueiros. Somos uma Nação que aceita na CPLP até outras Nações onde ninguém, nem a Directora da Lusofonia, fala a língua de Camões, Craveirinha, Nhô Balta e Agualusa; haja gás ou petróleo, se ambos melhor. No nº 24 continua aberto a Aparthotel VIP Éden, hoje único inquilino do histórico edifício. 


No Palácio Foz, aquele do SNI do António Ferro, do Moreira Baptista e, depois do  25 de Abril, do Luís de Barros (as diferenças eram só de cor), há agora de tudo, como se fosse a farmácia da propaganda, de um “Museums and Monuments  Shop”, onde se vendem as habituais bugigangas a puxar para o artístico, a PSP – Tourism Police Station-, o “Ask me L?sboa-i, o IGAC- Inspecção Geral das Actividades Culturais (espero que ao menos estes inspeccionem, já que é inútil), o GMCS – Gabinete para os Meios de Comunicação Social, a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista, o Museu Nacional do Desporto, a Cinemateca Júnior. Na montra está afixada toda a programação dos concertos a ter lugar no Salão Dourado do Palácio; a última vez que lá entrei foi para ouvir um concerto em honra do Presidente da República da Bulgária.  À esquerda, findo o Palácio, a Calçada da Glória; através da fila de turistas os meus olhos subiram para se colarem ao ascensor que me fugia cheio de vida(s) por ali acima. E eis-me novamente, com uma mochila, um bloco notas e uma caneta na mão, a meter o nariz em  tudo o que existe e acontece nesta nossa Avenida da Liberdade, mas fica para a próxima. 

Abraço. 

Lisboa, 7 de Agosto de 2014
Octávio Santos