quinta-feira, 2 de julho de 2015

Continuando a curto de ideias, o cronista mete os pés pelas mãos confundindo ginásios com alfarrabistas, escritas com cadeiras, pianos com apara-lápis velhos, mulheres de heróis e de políticos venais, euros com dracmas, não conseguindo desenvencilhar-se, e tentando mesmo induzir o desprecavido leitor a cair na teia de aranha que teceu malgré lui em torno de si mesmo

 
A semana passada tive umas ideias no duche do Holmes Place mas hoje, para além de não me ter passado uma única pelo bestunto, tive um choque quando, depois do duche, ao dirigir-me ao alfarrabista do Elias Garcia passei à porta da AICEP diante da qual estavam três colegas a fumar um cigarrinho. De longe pensei que ia ter dois dedos de conversa mas ao aproximar-me dei-me conta que não conhecia nenhum deles, e daí o terrível choque do qual talvez não possam compreender a violência. Tive sorte (no fim tenho sempre sorte) porque, antes de ir ao ginásio cansar o corpinho, fui salvo por uma cadeira que me deu ocasião para vos poder dizer alguma coisa. É que ele há cadeiras e cadeiras, como há escritas e escritas. Explico-me. Quando temos necessidade de uma cadeira para nos sentarmos compramos uma que sirva para isso mesmo, pesando entre a beleza, o conforto e o preço. Se temos dinheiro a mais, e para nos sentarmos já temos cadeiras suficientes lá em casa, vamos à procura de uma cadeira de design, melhor se com uma assinatura prestigiosa, pouco importando se, ao chegarmos a casa, ela sirva para tudo menos para nos sentarmos. Quando vos disse hoje que a minha escrita “é cada vez mais confusa, inconsistente e aleatória, sem um fio condutor que separe alhos de bugalhos” foi para vos alertar que, para vosso descanso e tranquilidade, não devem ler esta minha escrita de design duvidoso, mas sim precipitar-vos a comprar “EL James” que tem muito mais para ler e é, sobretudo, muito mais confortável. E como não me vieram mesmo mais ideias, decidi ressuscitar hoje três textos meus de datas diferentes só para não dizer que não vos dava nada inútil e incómodo a ler. Se possível bem sentados. 


1 - Porque me propus contar todos os meus encontros com gente que conta, começando pelo mais fugaz.

O Menino era pobre, ou aquilo que se chamava de remediado, e nasceu na Lapa, em Lisboa, na parte errada da Travessa do Moínho de Vento. O Francisquinho era rico e nasceu na mesma Lapa, numa das ruas da parte certa do bairro, S. Caetano ou Sacramento, já não me lembro. À casa do Menino vinha em visita, em algumas tardes de Domingo, e falo das décadas de 40/50 do século passado,  uma prima direita do seu Avô materno, de seu nome Sofia, que tendo vindo muito nova, da sua aldeia natal, servir para Lisboa, estava naquela altura em casa do Sr. Henrique e da Sra. D. Maria Adelaide – que era bisneta de D. Pedro IV de Portugal e I do Brasil – onde era criada dos meninos do endinheirado casal. Um dos meninos da casa era o Francisquinho, que teria mais seis anos que o Menino. A Prima Sofia, assim era chamada, era muito forreta e aparecia em casa dos primos afastados de mãos a abanar,   nem uns bolinhos secos que fosse para acompanhar  o chá que a prima – Mãe do Menino – lhe oferecia.  Num dia 23 de Novembro, seria um Domingo,  a Prima Sofia,  depois dos cumprimentos e hipocrisias habituais, veio dar um beijinho de parabéns ao Menino, que fazia anos nesse dia, 7 ou 8, entregando-lhe um embrulhinho muito bem feitinho, que teria a dimensão de uma caixa de fósforos pequena.  – Então, o que é que se diz à Prima? - recomendou a Mãe do Menino, que,  após um rápido e ciciado  “Obrigado!”  abriu  o presente que era nem mais nem menos que um apara-lápis de plástico preto.  Voltou a agradecer, e num exame mais atento à prenda de anos, o Menino verificou que o mesmo era usado tendo mesmo um cantinho partido. Coisa sem a mais pequena  importância. Acabada a visita,  depois da meia hora de despedidas exigidas pela cerimónia, o Menino mostrou a prendinha aos seus Pais, fazendo notar a sua condição objetiva de segunda mão.  Foi uma risota, confirmou-se o “pãodurismo” da Prima Sofia,  que devia ter muito de seu, tantos anos a trabalhar em casa de gente rica, dizia a Mãe do Menino,  e tanto o objeto como o episódio  ficaram conhecidos naquela família como o “Apara-Lápis do Francisquinho”.  Mas, acabado o relato desta  história verdadeira, já é tempo para as apresentações:  o Menino, ou seja o prendado aniversariante,  chama-se (chamo-me) Octávio Carmo de Oliveira Santos,  e o Francisquinho,  tão amado bijou da Prima Sofia,  que de certeza não deu pela falta do seu afiador partido, dá pelo nome de Francisco José Pereira Pinto Balsemão, e quis o destino que, durante a apresentação de um livro,  nos cruzássemos  no El Corte Inglès na passada segunda-feira, tendo dele recebido, agora diretamente, a prenda da sua mão, que me estendeu para que eu apertasse. Assim, à distância de sessenta e poucos anos, as mãos que tinham segurado o mesmo objeto, encontraram-se finalmente numa demonstração da harmonia que rege este nosso Mundo. 


2 - Porque sempre fui atraído pela loucura.
 
Arturo Benedetti Michelangeli, que foi um dos maiores pianistas clássicos do século passado (1920-1995), era um génio irrascível e insuportável que, durante toda a sua longa carreira, concedeu um único bis, e esse em honra do seu amigo Sergiu Celibidache, maestro tão genial quanto ele. Uma noite, em Londres, recusou-se a tocar quando ao entrar na sala de concertos se apercebeu que eram mais os turistas que os verdadeiros amantes da música e da sua arte. E ninguém o demoveu. Estando um dia a escolher um piano de cauda para um seu concerto, decidiu-se, após experimentar uns quantos, e para espanto de todos os que o acompanhavam, por aquele que o representante da marca tinha desaconselhado. – Levante a tampa se faz favor, pediu ao seu interlocutor, que prontamente obtemperou. – Como vê, o escapamento deste martelo está montado defeituosamente! E efectivamente estava, tendo-se o representante prontificado a chamar imediatamente um técnico para solucionar o problema. – Deixe tudo como está, ordenou Michelangeli, por favor não lhe roube a alma! (a)

O seu amigo Enzo Ferrari vendo-o extasiado diante de uma Berlinetta num dia em que o maestro visitou Maranello, lha ofereceu; dizem que passou a conduzi-la a alta velocidade, como um louco, pelas estradas municipais da sua Lombardia. Perto do fim da sua carreira fez-se sócio de uma empresa discográfica, tendo-se posteriormente recusado a gravar para ela, o que a levou à falência, na sequência da qual o fisco italiano lhe confiscou todos os seus bens, incluindo os pianos (a). Amargamente desiludido com o seu país natal transferiu-se para os arredores de Lugano, tendo dado no Vaticano o seu último concerto na península itálica - única forma de não ver o cachet  confiscado - em 1987, em honra do Papa João Paulo II. 


3 - Porque tendo encontrado o Vara e a Mulher às compras no El Corte Inglès, cheguei a casa e escrevi este soneto.
 
Mulheres 

Deve ser chato ser namorada do Guevara.
Esperança ter, não na vida mas na morte.
O mesmo valendo p’rá mulher do Armando Vara
Que vi com ele às compras no inglês El Corte.

Compram de tudo, cebolas e batatas,
Laranjas, figos e um presunto inteiro.
Doce viver na Costa das Negociatas
Seguro de não ser p’ra si o Limoeiro. 

Estando em casa, com a esfregona e a lixívia,
A amante do Che tem a alma em polvorosa
Pressentindo o que se passa na Bolívia.
 
O coração apertado também tem a do Vara
No meio das prateleiras, tremendo ansiosa
Com medo que o povo lhes cuspa na cara. 

Abraço.

Lisboa, 2 de Julho de 2015
Octávio Santos 

a)    Lembrei-me agora, a propósito do que escrevi acima sobre Arturo Benedetti Michelangeli, que a Europa está em risco de cair na asneira, e erro histórico, de roubar a alma ao povo grego e de confiscar os pianos ao Siryza, quando num passado recente outros, então muito poderosos, não se atreveram a calar a música de Solidarnost.