quinta-feira, 5 de maio de 2016

A “Pastiera” napolitana: receita original, seus truques e segredos. Sentindo-se por fim escritor, o nosso pobre cronista recolhe a penates, onde outros “cozinhados” o esperam, temendo ele que lhe cortem a luz e o gás antes de ter tempo de os acabar e, sobretudo, servir.


A “Pastiera” napolitana é um doce tradicional partenopeu (relativo a Nápoles, antes Partenope), típico do período pascal, feito à base de uma massa de farinha de trigo, manteiga, açúcar e ovos, e de um recheio composto de grão de trigo, requeijão, casca de limão e de laranja, crua e cristalizada e, sobretudo, do perfume intenso de flor de laranja. É um doce rico, importante, muito saboroso, que não pode faltar à mesa no almoço de Domingo de Páscoa dos napolitanos e restantes habitantes da Região da Campanha, de que Nápoles é capital, o qual combina a firmeza tenra da massa com o veludo macio, cremoso e perfumado do recheio.
E esta é a receita original daquela que foi a sobremesa do meu almoço do passado Domingo de Páscoa, que aqui vos deixo, nos seus mais pequenos pormenores, com a não velada intenção de me passarem a considerar finalmente como alguém que escreve coisas úteis, sabendo eu interpretar os sinais dos tempos, todos virados neste momento, que espero passageiro, para a gastronomia, bastando ligar a televisão ou passear os olhos pelas montras e escaparates das cada vez menos livrarias de Lisboa, e do país,  para constatar o andaço. Basta dizer que, em semana de Panamá Papers, a Revista do Expresso dedicou a capa e mais 10 páginas ao tema paparoca.

1 –   Tempo de preparação: 1 hora  
         Tempo de cozedura: 2 horas 
         Tempo total: 3 horas

         Tempo de gozo: a eternidade

2 -  Ingredientes para uma “Pastiera” com 28/30 cm de diâmetro

a)     Para a massa

330 gr. de farinha de trigo para pastelaria + 2 x 6/7 gr. da mesma farinha

165 gr. de manteiga a temperatura ambiente

130 gr. de açúcar branco

1 ovo médio inteiro

2 claras de ovo pequeno

½ colher de café de fermento em pó

2 colheres de chá de  aroma de flor de laranja (duas gotas, se  concentrado)

1 casca de limão médio, raspada

1 pitada de sal

 

b)     Para o creme de requeijão

350 gr. de requeijão de ovelha completamente enxuto

300 gr. de açúcar branco

3 ovos médios inteiros

2 claras de ovo médio

½ colher de chá de canela

4 colheres de chá de aroma de flor de laranja (1 colher de chá, se concentrado)

70 gr. de casca de citrinos cristalizada (em pequenos cubos)

 

c)     Para o creme de grão de trigo

150 gr. de trigo cru em grão ou 300 gr. de grão de trigo cozido

200 gr. de leite inteiro fresco

1 casca inteira de laranja média

1 casca inteira de limão médio

25 gr. de manteiga

Utilizar uma forma de alumínio leve, com fundo de 28/30 cm, a alargar para o bordo, com 4,5 cm de altura.

Atenção: Essencial saber sobre a utilização do grão de trigo, que é o ingrediente base e insubstituível da “Pastiera”:

Caso venha s ser utilizado o grão cru (pureza máxima da receita original), o mesmo deve ser posto de molho durante 3 dias, mudando a água de manhã e à noite, o que quer dizer que se quiserem comer a “Pastiera” no almoço de Domingo de Páscoa, terão de o pôr de molho na quinta-feira de manhã. Vem depois lavado, enxuto e metido numa panela com água suficiente para o cobrir por completo, levado a lume de chama alta até levantar fervura, prosseguindo depois a cozedura em lume brando durante uma hora e meia sem ser mexido. Uma vez cozido, retirar-lhe toda a água ficando pronto para ser utilizado. Caso seja usado o grão já cozido, o dobro da porção, (300 gr. em vez de 150), basta seguir as operações indicadas no capítulo “Como preparar o creme de grão de trigo”.

Vamos lá pôr então a mão na massa, que deve ser preparada com 12 (melhor se 24) horas de antecedência:

Meter no recipiente de uma batedeira eléctrica a manteiga (macia), o açúcar, a casca de limão (raspada) e o aroma de flor de laranja, e bater tudo por 3/4 minutos até obter um creme. Aumentar a velocidade e juntar o ovo inteiro seguido das claras, uma de cada vez, juntando só a segunda quando a primeira estiver já bem incorporada, até obter um creme liso, homogéneo, sem grumos; juntar a pitada de sal. Parar a batedeira e juntar de uma só vez a farinha, precedentemente passada por uma peneira para que não tenha qualquer grumo, e o fermento em pó. Mexer tudo à mão com uma colher de pau até obter uma massa compacta mas macia. Transferir a bola de massa obtida para um plano de trabalho devidamente enfarinhado (6/7 gr. de farinha) e amassá-la à mão por uns bons 5 minutos. Apertar então a bola até lhe dar a forma de um disco voador espesso (metade da altura da bola), que será envolvido em película transparente e metido a repousar no frigorífico, para posteriormente, muito firme e fresco, poder ser trabalhado.

E aqui passamos à primeira fase da preparação do creme de requeijão que, tal como a massa, deve ser feito com 12/24 horas de antecedência:

Apertar num pano o requeijão para que perca todo o seu soro, deitá-lo num recipiente onde lhe será adicionado o açúcar, mexendo tudo à mão com uma colher de pau até que fique homogéneo, ou seja, que o açucar se dissolva completamente no requeijão. Tapar o recipiente com película transparente e toca a andar para o frigorífico a fazer companhia à massa, até ser chamado para as operações finais.

Na manhã da preparação da “Pastiera”, vamos começar pelo creme de grão de trigo: Deitar num tacho médio o grão de trigo, o leite, a manteiga, e as cascas inteiras do limão e da laranja, levando tudo a cozer em lume brando por 25/30 minutos, mexendo constantemente com uma colher de pau (omiti o óleo de cotovelo na lista dos ingredientes), obtendo assim um creme muito aveludado. Retirar, eliminando-as, as cascas dos citrinos inteiras sem desperdício de creme (podem lamber só um bocadinho), retirar cerca de 100 gramas do creme, parte que será homogeneizada com uma varinha mágica; não mais de 100 gr. porque a presença dos grãos de trigo inteiros deve fazer-se sentir no resultado final. Juntar então os dois cremes, o batido e o não batido, deixando arrefecer tudo.

Voltar então ao creme de requeijão, que deve começar por ser coado por um chinês de furos fininhos, operação muito chata mas indispensável porque tudo deve ficar absolutamente macio e cremoso sem um único grumo. A este ponto, juntar-lhe a canela, misturando-a bem no creme, e só depois os ovos inteiros e as claras, um de cada vez, ovos e claras, juntando cada um só após o precedente estar bem absorvido. E, agora, vamos juntar os dois cremes mas só quando aquele de grão de trigo estiver completamente frio; com tudo bem homogeneizado juntemos as cascas cristalizadas dos citrinos em pedacinhos muito pequenos, ou um pouco maiores se gostarem mais assim, mexendo tudo bem, e o creme assim pronto, que á afinal o recheio da nossa “Pastiera”, é coberto com película transparente e vai para o frigorífico.

Regressemos agora à massa que está há dois dias à nossa espera: Enfarinhar bem o plano de trabalho (6/7 gr. de farinha) e estender nele a massa, agora dura e fria, com o velho rolo da dita (devidamente higienizado em caso de recente utilização no legítimo consorte) até que a mesma atinja a espessura de 4 mm; forrar com ela a forma, previamente untada com manteiga e enfarinhada, cortando todo o excesso que ultrapasse os bordos da forma. Com um garfo picar o fundo da massa (10/15 garfadas), e com uma faca afiada fazer ligeiros cortes à volta dos bordos da mesma. Colocar a forma no frigorífico enquanto, com o que sobrou da massa que deve estendida com a mesma espessura (4 mm), se cortam 6/8 tiras com o máximo de 1,5 cm de largura, colocando-as no frigorífico. Com a massa fria (é muito importante para o resultado final), tanto a da forma como a das tiras, retirar tudo do frigorífico, deitar o recheio sobre a massa na forma sem a encher completamente (deixar ½ cm livre) e dispor 3/4 tiras de massa paralelamente sobre a “Pastiera”, e as outras 3/4 a formar losangos com as primeiras, cortando o que das tiras ultrapassar os bordos da forma e apertando com os dedos as extremidades das mesmas contra os ditos bordos e, a este ponto, a “Pastiera” está pronta para ir para o forno, podendo ir novamente para o frigorífico, enquanto se cuida deste.

Para uma cozedura perfeita a temperatura não deve ultrapassar os 150º Celsius, porque só uma cozedura lenta e branda lhe garante a consistência e sabor característico. Com o forno (melhor se não ventilado) já quente, meter a forma da sua zona média/baixa e deixar cozer por 1 hora e 45 minutos. Ao fim de 1 hora, se a “Pastiera” estiver a ficar muito pançuda, abrir ligeiramente o forno e voltar a fechá-lo. Durante os últimos 15 minutos convêm controlar a cor da “Pastiera” que, se se apresentar ainda pálida, deve subir para a parte média/alta do forno para ganhar uma bela cor de âmbar; só no caso de continuar descorada se poderá levantar a temperatura até 180º nos últimos 5 minutos. Fazer então a prova do palito, que deve sair enxuto. Desligar o forno e deixar repousar durante 30 minutos a maravilha (estou farto de repetir “Pastiera” e não me atrevo a chamar-lhe bolo ou tarte), com a porta do forno entreaberta, usando uma pega, uma colher de pau ou mesmo um Salazar. Retirar do forno e deixar arrefecer a temperatura ambiente.

Só no fim é que vi que a receita rezava assim: “Não tocar na “Pastiera” pelo menos durante dois dias. Os seus aromas e perfumes devem revelar-se lentamente”. Disse-vos antes que para se comer esta maravilha no almoço de Domingo de Páscoa seria necessário começar a prepará-la na Quinta-feira Santa, mas com esta novidade penso que o melhor é começa-la no Carnaval. Finalmente mais isto, que traduzi à letra:

Como conservar a “Pastiera” napolitana

A “Pastiera” conserva-se perfeitamente à temperatura ambiente, em local seco e fresco, 7/10 dias, e isto graças à presença das frutas cristalizadas que preservam a humidade do recheio mantendo-o integro. Não meter a “Pastiera” no frigorífico. Não a manter junto de fontes de calor.

E cheguei ao fim, lembrando-vos que o meu futuro se adivinha incerto dado que, se bem recordo, também o Manuel Luís Goucha começou com programas de culinária, e não autorizo ninguém a dividir e italianizar esta palavra.

Abraço, e até um dia destes!

Lisboa, 5 de Maio de 2016
Octávio Santos

PS: Tenho a certeza que esta 101ª crónica foi a única inteiramente doce que vos dei até hoje.

2 comentários:

  1. Caro cronista,
    Já não era sem tempo!!!! Mas tinha mesmo que acabar com uma inépcia açucarada para as suas pseudo admiradoras? Nunca pensou dedicar-se à pesca ou ao sudoku?
    Sem rancor

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  2. Ao Sem Rancor,
    Se não fosse a falta que nos fazem as crónicas do autor às quintas, diria ainda bem que fez uma pausa, pois pelo menos não temos que ler estes comentários amargos, que não são mais do que sinónimo de uma grande frustração de um amargo, ácido e sem prurido comentador.
    L

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