quinta-feira, 27 de março de 2014

Escrita criativa com massa de letrinhas na borda do prato fundo da canja

O único barbeiro que compreenderia o meu texto de hoje seria o Celestino se fosse vivo porque me contava a história da formiguinha que entrava no buraquinho pegava um baguinho de trigo e saía cá para fora e repetia, repetia, repetia cem vezes se preciso fosse enquanto me cortava o cabelo e Deus sabe o que era ficar para ali imóvel com medo que uma tesourada distraída por uma das formigas me cortasse uma orelha ou que aquela máquina alicate infernal me entalasse um sinal no pescoço fazendo-o sangrar e isso era morte certa no dizer dos velhos isso e um calo agravado que era ainda pior que nem com ventosas ou sanguessugas havia salvação mas o Celestino teria compreendido se fosse vivo e não o é há pelo menos meio século porque ouvia a Mãe do menino perguntar: “- Sempre queres a canja com pevides cuscos cotovelinhos aletria ou letrinhas?” - e o menino invariavelmente respondia debaixo da toalha cheia de cabelos “- Letrinhas Mãe.” E a Mãe já sabia que nesse dia ao almoço depois do Celestino arrumar as tesouras receber o devido e despedir-se "- Até para o mês que vem se Deus quiser!", o menino ia comer a canja fria pois começaria a procurar letras com a colher de sopa para as alinhar na borda do prato fundo e escrever palavras quanto mais complicadas melhor pois que seria mais difícil encontrar as letras todas que serviam mas isso fazia parte do gozo da escrita “- Olha que comes a canja fria!” - dizia a Mãe, “- O Pai está a chegar e sabes como ele é tem goela de pato come tudo quente e a correr e já ele terá engolido a última sopa de pão que ensopou no molho do guisado e tu ainda aí a espiolhar a massa nem sei para quê.” Mas o menino sabia para quê e escrevia palavras esdrúxulas e proparoxítonas e capicuas e nomes de pessoas de cidades de animais de rios de artistas de cinema Myrna Loy era dificílimo porque o i grego não era fácil de encontrar como o cromo do Costa Pereira nos rebuçados da bola que se trocava por três Matateus e também Errol Flynn mas Vasco Santana era mais fácil como  Jean Gabin  ou Cantinflas ou Pamplinas e um dia, escrevendo cidades, descobriu que Roma ao contrário era amor e começou a fazer um carrocel de Roma à volta da borda do prato fundo para se perder na palavra e já ninguém saber o que é que ele queria realmente escrever e o ovo amarelo e a pata da galinha e os pedaços de moela fígado e coração e pescoço, não porque a Mãe sabia que o menino não gostava de pescoço mas adorava chupar os ossinhos todos da pata andava tudo por ali a boiar e a esfriar no meio do caldo com olhinhos de gordura e umas farripas de cenoura e cebola, não podia faltar a cebola às vezes com um cravo de cabecinha espetado que lhe dava aquele sabor das Índias a que os portugueses se habituaram, como se seu fosse, e o menino procurava letras e escrevia, escrevia, escrevia por vezes coisas sem nexo mas que lhe soavam bem repetir como a truta a trote tropeçou e estatelou-se na trampa ou a escola só para jogar à bola porque sou um estarola e as letras saíam da borda do prato fundo que tinha um filete dourado a desaparecer de tanto ser lavado com sonasol no alguidar de zinco e entravam na cabeça do menino que as fazia passear pelo cérebro e algumas ficavam lá perdidas e já não saíam cá para fora e é agora em dias como o de hoje melancólicos em que a esperança se esvai e a fé precisa de uma saponária,  que elas saem sem sentido nem nexo para comporem coisas incompreensíveis como esta que só o Celestino poderia ler, intervalando as letras do menino com as suas formiguinhas que saíam do buraquinho do celeiro, já sem os baguinhos de trigo mas com o seu produto acabado, as letras já formadas que formavam palavras por milagre, lembro-me de ver as formiguinhas do Celestino em fila indiana a carregar frases feitas como "foge menino foge” e era o diabo ou “come a canjinha que arrefece” e era o anjo e as palavras e as frases as das formiguinhas e as outras volteavam no ar como que enroladas por um torvelinho e entravam nos ouvidos do menino que as guardou todas e algumas eram bem feias e são aquelas que lhe custam mais a dizer mas às vezes é preciso porque há sempre um filho de Putin que a isso o obriga mas ele tenta ser gentil mas não sempre consegue,  mesmo com aqueles que mereciam que houvesse Kalaschnikovs carregadas com palavras pesadas para lhes disparar contra o coração mas qual quê eles têm cotas de malha anti-palavras  e advogados com olhos de zombies que fazem as palavras disparadas fazerem ricochete e atingirem-te a ti e o menino sabe isso muito bem, por isso errou quando brincava com palavras na borda do prato fundo da canja e que hoje não lhe servem para nada porque a palavra que já serviu para derrubar colossos com pés de pastilha gorila, já eles descobriram como a tornar inócua com um sorriso uma mentira e uma desfaçatez, uma calúnia mesmo um crime, desde que sem provas que mesmo essas se destroem com outras palavras porque as palavras se tornaram maleáveis indecifráveis eles inventam significados novos para baralharem os dicionários e pôr-te às aranhas sem saberes bem o que dizes ou pior com medo de usar as palavras que inventaste na borda do prato fundo da canja com miúdos a esfriar diante dos novos inventores de palavras novas que só querem dizer o que eles querem que seja naquele dia mudando no outro, e assim, se o menino tem respondido “- Mãe, hoje quero pevides ou cotovelinhos.” talvez hoje não estivesse tão perdido, soubesse falar com eles todos para os desmentir ou estar de acordo e escusasse de andar a meter-se em táxis sem destino aparente só para ter em quem vai ao volante  interlocutores para as suas inúteis palavras ou tentar pateta convencer a Odete Miranda cabeleireiro unissexo da 5 de Outubro, que no canto do seu salão há um buraquinho por onde entram formiguinhas a correr em fila indiana e em fila indiana saem carregando um grãozinho de trigo, que todos sabemos não serão distribuídos igualmente por todos nem em pão nem em massinha de letras para a canja. Repousa em paz Celestino, barbeiro do menino arrependido de ter brincado com letras e formado palavras vãs na borda do prato fundo da canja, que sempre comeu fria por sua exclusiva culpa.

Lisboa, 27 de Março de 2014
Octávio Santos

9 comentários:

  1. Hoje estive mais ou menos a aguardar a saída do seu post, com uma certa curiosidade sobre o tema. Vejo que insiste em temas difíceis, sobretudo este da escrita criativa, que parece estar na moda. Ao ler, senti que estou mais próxima de outro autor de que gosto muito: Roberto Bolaño.DFC

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  2. Uf, Octávio, acabei de jantar e sentei-me a ler o texto das letrinhas. Foi preciso fôlego, que isto da escrita criativa exige esforço e dedicação. Fica-se a perceber porque se usam sinais e pontuações: para os preguiçosos - como eu - poderem ler!
    Obrigado pelo texto. Mas não compreendo o arrependimento do menino.
    Ah, já me esquecia, encontrei a vírgula

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  3. Se queres saber, pela primeira vez penso sinceramente que ès um escritor, um verdadeiro. Um verdadeiro escritor nunca deixou de ser uma criança a brincar com letras, apesar de ser muitas coisas mais. O Celestino tem muita sorte. O Celestino està no Panthéon dos leitores daqui para diante. Eu pessoalment nao senti a falta da pontuaçao porque este texto nao è meramente um exercicio de estilo, è a vida vivida a jorrar em palavras, è uma onda que sai do coraçao sem fronteiras entre a superficie e o fundo, entre a infancia e...a outra idade, entre ligeireza e a dor, entre tantas coisas mais. OK, agora sim, estou contente por ter ficado na reserva, de nao fazer parte dos que aplaudem por um sim e por um nao, porque agora posso dizer : afinal o meu paizinho sabe escrever para as pessoas, para todas as pessoas que tenham um dedo de sensibilidade - e que por sorte tenham tido a possibilidade imensa na vida de apreciar esta dadiva que è a literatura -

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    1. Feliz pela promoção vinda dessa “Academia”, e vai ter de ser agora que vou escrever o romance que, no dizer do Bernardo, me está a faltar para poder dizer que sou um escritor a sério. Vejo que finalmente atingi os leitores que me interessam, porque atirar-me contra moínhos de vento (sem número) com a certeza de não arriscar a pele como o Alberto Saviano, parece ter sido considerado um exercício menor. – Escreves para taxistas e barbeiros, disse-me alguém, sem saber que me estava a fazer um favor pois sem isso não me lembraria do Celestino que me ensinou lengalengas , mas que nem por isso irá para o Panthéon apreciar a “dádiva da minha literatura” porque, tendo nascido em Portugal e descoberto que não metendo vírgulas entre as suas formiguinhas elas faziam melhor e mais depressa o seu trabalho, desligou o mecanismo retardante que é a chave de volta do (in)sucesso na Costa das Negociatas. Já ao Eusébio foi vedado o outro Panthéon porque, tendo descoberto que se podiam marcar golos sem fazer flores, sobrepôs o conteúdo à forma, pecado que não passa pelas Forcas Caudinas da inveja nacional. Dirás, lá está ele outra vez a estragar tudo, não se lhe pode dar corda… De qualquer maneira OBRIGADO e durante 3 ou 4 semanas continuarei a alinhar as letrinhas pelo meu carreirinho de formigas sem me desviar para pisar os pés aos que estão atentos com a sua indiferença a continuar a fingir que tout va bien Madame la Marquize. Petits Bisous. Pipo

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  4. Ah, Octávio!...
    Não sei como agradecer-lhe a partilha esta saborosa sopa de letras que colocou um imenso, enternecido sorriso na minha cara, pela recuperação da menina franzina e sardenta que se dedicava, exatamente da mesma forma, a construir palavras na borda do prato (que também tinha um filete dourado) onde a mãe dela servia uma canja fumegante e odorífera, saborosissima. Ai, os ossinhos da pata, aquela coisa maravilhosa, disputada com a irmã mais velha!... Ai, os ovinhos pequeninos, tão amarelos e cheios de sabor. É tão isso!...

    Florinda

    Partilhamos as memórias da canja, das coleções de cromos (a do cinema era tão fantástica, a Brigitte Bardot, a Leslie Caron, a Jane Mansfield e a Capucine, o Errol Flynn mais o canastrão-mor do Clark Gable, e, claro, o Peter O'toole, o Marlon Brando e o lindíssimo Sidney Poitier, que vi na última Gala dos Óscares pelo braço da Jolie, tão velhinho e ainda assim tão cheio de charme...) e, imagine-se, partilhamos também os bons ofícios da Odete Miranda, que eu conheço deste a juventude de ambas, quando ela trabalhava num cabeleireiro de luxo na Av. António Augusto Aguiar, veja como são as coisas!...

    Quanto à forma, sem pontuação ou quase, remete para a minha memória das delirantes Redações da Guidinha, do Luis de Sttau Monteiro, publicadas no Diário de Lisboa, atrevida e divertida crítica de costumes dum tempo em que as críticas podiam custar a liberdade...

    Sabe que mais? Isto é uma conversa geracional - os nossos filhos e netos devem ter a maior das dificuldades em acompanhar todos os sentidos desta nossa incursão retrospetiva no tempo. Azar o deles!... :-)

    Abraço,

    Florinda Grave

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    1. Cara Florinda,
      Habituado a partilhar tudo o que é partilhável, cedo-lhe com alegria, depois disto, metade da minha canja, embora a esteja a vê-la comer a fazer o pino no espaldar da cadeira ou de cócoras com as pernas em laçarote, numa dessas posições impossíveis que eu, na minha ignorância e inocência, penso sirvam só para as suas novas práticas originárias das Índias (em sentido mítico), como os cominhos da nossa canja.
      Lembrando-me tantos actores esquecidos por mim, e não era possível nomeá-los todos, e pegando (em sentido metafórico) na BB, arraso-a com a CC – Claudia Cardinale -, a DD – Diana Dors -, a PP – Pascale Petit, acabando no WC – William Caulfield, popular comediante televisivo norte irlandês – (a net é maravilhosa!). A propósito do simpático hóspede do “Adivinha quem vem jantar?”, hei-de contar-lhe uma história verdadeira e pago sempre as minhas promessas.
      A propósito de WC, até agora tenho escrito denúncias contra muitos meninos como o da história das formiguinhas, que juntam letras para formarem palavras e correm no outro dia à Porto Editora para lhes modificarem o significado e o sentido. Mas vejo agora, e já mo tinham dito para meu bem, não valer a pena escrever sobre esses meninos porque eles quando se cansavam das palavras e brincavam com submarinos, levavam o país ao fundo pelo lado ético mas o levantavam pelo lado económico, e por isso os meus escritos não eram bem vindos, especialmente em tempo de crise. E talvez seja assim porque, encadeando 3 episódios nacionais e vendo outros tantos filmes italianos, não desperdiçarei mais o meu “enorme talento” com assuntos que, descobri agora, são triviais, correntes e necessários, senão indispensáveis. Explico:
      - Quando uns juízes abelhudos levantaram o caso dos submarinos, veio da Alemanha um passarinho que nos cantou que a Volkswagen tinha interesses na Ferrostal e que não era saudável para a Auto Europa andarmos a meter o nariz debaixo da linha de água;
      - Em tempo de profunda crise arriscamo-nos todos a ganhar com a “Factura da Sorte” um Audi A6 de 47 mil euros, carro de luxo da Grupo Volkswagen que fará a fortuna de um desempregado jovem de longa duração;
      - Já esta semana a Auto Europa recebeu da Alemanha a garantia de mais um ou dois modelos, indo para isso construir uma nova plataforma que custará à volta de 700 milhões de euros, dos quais sabemos que uma grande parte será nossa pelos sorrisos dos nossos governantes e técnicos que assinaram o contrato.
      Moral da história: É preferível manter os submarinos sossegados nas águas calmas do Alfeite, ou que volte a fome negra ao Distrito de Setúbal?
      Epílogo: Os filmes italianos que vi, e eram denúncias dos multimilionários negócios criminosos das diversas mafias (malavita organizata) que dominam economicamente o país, acabam todos com a morte violenta dos abelhudos de turno, fossem jornalistas, políticos, padres ou bancários. Em Portugal – este cantinho do céu como dizia a minha Avó – nada acaba em sangue com excepção de uns ladrúnculos de cobre abatidos numa quinta em Palmela - e lá voltamos nós a Palmela - e quando se querem fazer crimes grandes os nossos criminosos vão até Maricá escapando para cá. Não é muito melhor assim?
      Abraço
      Octávio

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  5. Como se percebe, andei às aranhas para publicar o meu comentário e vá-se lá saber porquê apareceu um Florinda pelo meio do texto... Sorry

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  6. Adorava poder corresponder ao seu pedido para que participemos com os nossos comentários !!! Mas, realmente, o seu pensamento é de tal modo elaborado e complexo, que me é extremanente difícil dizer seja o que for ... No entanto, pelo que me é dado constatar, a canja aguçou vários apetites. Ainda bem, pode continuar, que o seu blogue, de certeza não vai morrer !!! Avance com mais uns petiscozinhos (agora tão na moda por força das tascas que por aí abundam) e verá que resulta.

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  7. Amigo, dou por mim a correr pelas tuas letras e a perder algumas e a inventar outras e a sopa a fazer-se e a desfazer-se e eu sabia que ía saborear mas não tanto e fico com a vontade cheia de me pôr a cozinhar letras e palavras em oficinas de sabores e saberes, sabes? 1 abraço de parabéns!!! degustei muito!!!

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