quinta-feira, 29 de maio de 2014

Do Preço e da Liberdade dos Homens

Dizem os homens íntegros que não têm preço, e que em nenhuma situação se deixariam comprar, não se desviando um milímetro daquele que acreditam ser o caminho da rectidão, e eu, lembrando-me de figuras, e foram tantas, que tudo sacrificaram por estes princípios, não posso não estar mais de acordo, embora  sabendo ser alvo da risota discreta daqueles figurões  que, tendo percebido a estupidez e inutilidade desta atitude, estão a tratar da sua “salvação” com métodos muito mais fáceis, simples e eficazes, sem se curarem minimamente dos danados que semeiam pela sua estrada, ou sejam, quase todos nós, aqueles para quem um Jota continua a ser  uma consoante do alfabeto latino, e depois do filme, uma zona de Chelas, e não o produto de uma qualquer  escola partidária (madrassas para engodos e trapaças), e que Ovar é a cidade de origem das varinas e não um depósito de sucatas metálicas e humanas onde varas de porcos oficialmente certificados continuam a refocilar na certeza da impunidade ou da prescrição, armando em chico-espertos,  que é o que está a dar na Costa das Negociatas.


Não tendo a pretensão de fazer parte desses justos, lembro-me que uma vez, já lá vão quase 40 anos, estando eu em Sófia a exercer funções consulares, se me apresentou uma jovem que estudava na Universidade Kliment Ohrisdsky na capital búlgara, a expor-me o seu problema para o qual me pedia solução. Neta e filha de portugueses residentes em Moçambique e aí nascida, tendo, após a independência, por imposição de uma lei que não admitia o estatuto de dupla nacionalidade, optado, seguramente por questões ideológicas, por aquela moçambicana, sendo por isso titular de um passaporte do novel país africano. Em Sófia casara entretanto com um cidadão búlgaro e, dado que também a Bulgária não admitia tal estatuto, escolheu, desta vez por amor, a nacionalidade do marido, perdendo o passaporte moçambicano e adquirindo aquele búlgaro. Acontece que, tal como as convicções ideológicas, o amor não dura para sempre, e a nossa ex-lusa e ex-moçambicana se encontrava, por divórcio, também ex-búlgara já que as autoridades do país das rosas, sempre no respeito de uma qualquer lei, lhe retiraram o passaporte que adquirira pelo casamento. Em resumo, a jovem veio à Secção Consular porque se encontrava na condição de apátrida, o que lhe abria um futuro pouco risonho, tendo por isso começado a ter problemas com a bolsa de estudo, e desejava rumar a Portugal para recomeçar a sua vida. Expliquei-lhe tudo o que estava previsto na lei portuguesa, os documentos que teria de me apresentar para que, depois de enviados para Lisboa, ser organizado um processo que seria avaliado para uma posterior decisão que poderia eventualmente devolver-lhe a nacionalidade portuguesa. Percebendo quanto tempo tudo isso poderia levar, a jovem disse-me que o que queria era sair imediatamente do pesadelo em que se metera e deixar a Bulgária o mais rapidamente possível, começando a chorar copiosamente. Mesmo vinda do país de Cahora Bassa, provou-me que a maior força hidráulica conhecida é uma lágrima de mulher e aí “vendi-me”. Abri o cofre, tirei um passaporte, preenchi-o em seu nome, assinei-o, pus-lhe o selo branco e entreguei-lho contra o pagamento dos emolumentos previstos na Tabela Oficial dos Actos Consulares, porque sou intransigente quando se trata de cumprir a lei. E conheci o meu preço, que foi aquele da solidariedade humana, já que não gosto da palavra compaixão que sugere sempre a ideia de uma acção de alguém que está bem, e tem poder, em favor de alguém que está mal e depende desse poder. 

Preço que recentemente voltei a avaliar e conhecer, desta vez simplesmente por amor. Todos sabem que o meu Irmão pequenino nos deixou no passado dia 8 da Maio, cinco dias após ter completado 63 anos, dia em que teve os Netos a apagar-lhe as velas em dois Fofos de Belas, um nas mãos do Tomás e outro nas do António, e todos nós a cantar-lhe com um nó na garganta o parabéns a você. Repousa agora, a seu pedido, sobre o local onde há dois anos sepultou o Lidador, seu amado garanhão, no campo que está ao lado esquerdo do sobreiro caído, que é a imagem deste texto. 

Pois, o Vasco, na sua imensa fé em Deus e nos homens, quando me pôs ao corrente da sua gravíssima condição de saúde, avisou-me logo que, estando nas mãos do Serviço Nacional de Saúde, no seu caso no IPO Francisco Gentil de Lisboa, estava seguro que iria receber os melhores tratamentos hoje existentes no mundo, e os melhores cuidados da parte de todos quanto trabalham naquele hospital especializado, e que, com a ajuda de Deus, teríamos que o suportar ainda por muitos e bons anos.  Comecei então a estar ao lado do Vasco todas as vezes que ia ao IPO para as sessões de quimioterapia, e nessa altura escrevi o texto “Venenos - bons, maus, vingadores, escondidos e outros”, editado em 23 de Janeiro. Durante a primeira sessão o Vasco perguntou-me se não seria justo escrever um texto sobre a excelência dos serviços, médicos e outros, do IPO, e sobre a competência e disponibilidade de todos aqueles que nele exercem a sua actividade. 

Eu, que tenho sempre as antenas, áudio, vídeo e mesmo aquelas subliminares, em acção na sua máxima potência, e que tinha já visto coisas que eram opostas àquilo que ao Vasco parecia, pus uma surdina a todas essas minhas convicções baseadas na simples observação de factos, e escrevi o texto “IPO…hIPO…hurrah!!”, editado no dia 13 de Fevereiro, que creio terem todos percebido ser forçado e despudoradamente de parte, mas o preço recebido e a satisfação  proporcionada justificaram quanto fiz. Preço que, por amor, recebi e continuarei a receber enquanto viva, não desperdiçando um cêntimo dos exemplos e ensinamentos que o Vasco me legou, e não só a mim. 

E do preço passamos à liberdade. Posso eu, que desde sempre escrevi aquilo que me pareceu justo escrever, desde que tal correspondesse à verdade e servisse para denunciar o que está mal segundo a ética das pessoas de bem, pôr preto no branco, hoje e agora, tudo o que de reprovável observei, ouvi e sobretudo vi sofrer a quem estava mal, no IPO, de forma insuportável, e, em escala muito menor mas mesmo assim reprovável, no Hospital da Cruz Vermelha? A resposta é não, porque, assim como reconheço ter um preço, também sei pôr limites à minha liberdade, calando-me desta vez a custo, arriscando trair a memória do meu Irmão pequenino, em nome da tranquilidade de todos os que frequentam, doentes ou agentes de saúde, os acima citados hospitais, e porventura outros. 

Assim, como decidi, por um acto de auto censura, não ofender a sensibilidade de outrem, deixo-vos duas coisas que exaltam a memória daquele que nos deixou: 

- A peça que o nosso Amigo Bruno Caseirão quis escrever, lembrando o Vasco, na revista Equitação, e o vídeo que ilustra esta justa homenagem,  prova de quanto ele era apreciado no universo encantado do Cavalo Puro Sangue Lusitano.

- Uma parte do texto que me senti de escrever sobre o Vasco, destinado a ser lido durante a Missa de Corpo Presente, e ele aí está: 

“Escrevi umas coisas para dizer hoje aqui junto do corpo do meu Irmão pequenino, porque me recordo de, diante dele e da Maria Rosa - e de mais umas centenas de pessoas – ter embatucado as palavras que deveria dizer a fechar uma feira na Cidade da Praia, e ter feito um silêncio que, se foi de 30 segundos me pareceu uma hora, acabando por concluir com uma banalidade aquilo que não disse, envergonhado como um cão batido. 

E foi por isso que, desta vez, escrevi tudo direitinho para não passar por outra vergonha diante do Vasco. E a propósito dos 30 segundos que me pareceram uma hora, repito o que o Vasco me disse um destes últimos dias que passámos juntos: tendo-me perguntado que horas eram para saber quanto tempo faltava para lhe ministrarem uma das drogas que lhe aliviavam momentaneamente as dores, e tendo eu respondido que só faltava uma hora, replicou: - Uma hora é tanto para quem conta cada segundo! 

Tenho esta pecha de citar autores importantes, talvez para sentir, na imensa e estúpida vaidade dos homens, que posso fazer parte da estirpe, e hoje vem-me em mente o que Shakespeare pôs na boca de Marco António no funeral de Júlio César, para o contrariar quando diz aos romanos  “Estou aqui para enterrar César, não para o elogiar”,   porque eu estou aqui para elogiar o Vasco e não para enterrá-lo.  Mas também para concordar quando diz “O mal que os homens fazem sobrevive-lhes; o bem é muitas vezes enterrado com os seus ossos”, embora eu aqui esteja suplicando para que desta vez não seja verdade, com a certeza de ter do meu lado todos aqueles que lhe quiseram bem em vida e que nunca esquecerão o bem que o Vasco espalhou à sua volta. 

No Domingo passado fui ao seu santuário das Valadas encontrar-me com os meus sobrinhos Mafalda e David, e aquele sobreiro enorme, abatido atrás da casa pelo temporal, com as raízes ao Sol e as folhas a ficarem secas, representou-me o meu Irmão que, como ele, tanto produziu em vida de útil e valioso, ali à espera que lhe cortem os ramos secos para lenha. Resta-me a certeza que a força que ele transmitiu à Maria Rosa e aos seus Filhos, faça com que os ramos cortados sejam úteis para aquecer e sobretudo iluminar quantos a eles se aproximem. 

A última vez que vi o Vasco feliz - sem contar com o extraordinário encontro que teve com a minha Filha Margarida algumas horas antes de nos deixar, relâmpago em céu sereno - foi no passado dia 22 de Março nas Valadas quando o seu “mais novo amigo de infância” o visitou, a si, à sua Família e aos seus cavalos, acompanhado de Dona Lectícia. Pois esse amigo, o grande escritor brasileiro José Paulo Cavalcanti Filho, escreveu-me da sua Recife: 

Queridíssimo Octávio,

Há um conto de Cortazar em que homem e mulher, que nunca se viram, acabam se apaixonando. Se comunicavam por grafites escritos nos muros. Até que ele um dia escreveu " dói também em mim ", e desapareceu. É o que me ocorre, agora. Dói também em mim. Em nós, Maria Lecticia inclusive. Dor enorme, amigo. Pode acreditar. Aquele dia foi muito especial. Tivemos enorme prazer em compartilhar da alegria familiar. Dói em mim, Octávio. Como dói. Mas segue a vida. Abraços, José Paulo.” 

Termino, voltando novamente à tragédia de Shakespeare, citando a parte final do discurso de Marco António: - Desculpem-me; o meu coração jaz na urna com Vasco e devo calar-me até que ele volte para o meu peito. 

Tenho saudades. Pronto!

Lisboa, 29 de Maio de 2014
Octávio Santos
 

*Gostaria que relessem a última carta que escrevi ao Vasco, a qual está no texto “Escrita criativa de um menino em liberdade condicional com tempo para escrever uma carta de amor, não sabendo ainda se terá coragem para a remeter ao destinatário”, editado no dia 17 de Abril.

1 comentário:

  1. Muito especial é o texto desta quinta-feira. Agradeço ao autor a leitura que me proporcionou desta vez (DFC)

    ResponderEliminar