quinta-feira, 11 de setembro de 2014

De como o cronista, cansado de tanta Liberdade, se sentou num banco de jardim a pensar no que haveria de escrever para o 11 de Setembro, dia de São Pafúncio** e 13º aniversário do advento da nova e assustadora era que estamos a viver, se deixou adormecer, e de tudo o que depois aconteceu de extraordinário



Alguém lhe pousou ao de leve uma mão no ombro e ele voltou a cabeça, entre o intrigado e o aborrecido, pensando que mais alguma lhe iria acontecer naquela Avenida, e viu um jovem sorridente e manso que apenas lhe disse: - Vem! Levantou-se e seguiu-o, a ele que se dirigia ao seu Tuk-Tuk destes que emprestam a Lisboa um ar de Bangkok comprado no chinês, e sentou-se sem nada perguntar. Ergueu o olhar à direita e viu-a descer do Elevador da Glória e, ocupando todo o seu ângulo de visão com a sua saia de chapéu-de-sol, encaminhar-se lentamente, como uma diva no tapete vermelho do Festival de Veneza, na direcção da traquitana. Ele susteve a respiração lembrando-se da última vez que se encontraram, o pintor morto por terra, ela numa ascensão para a liberdade, ele inerte, carregado de todos os dons recebidos durante a sessão de pose para a “Última Tela de Picasso”.

Fechou os olhos e pareceu-lhe ouvir uma voz ciciada ao longe: - Faz-nos sonhar! Inclinou-se, abriu a porta do “seu descapotável” não sem receio de lhe ouvir: - Se fosse há 20 anos teria aceite a boleia…, mas ela entrou sem nada dizer, compôs o largo círculo da sua saia e ordenou ao jovem, com uma doçura que temia perdida, que rodasse à toa por Lisboa, mas rápido porque o tempo que lhe fôra concedido era escasso. Arrancou aos solavancos com um barulho de assador de castanhas, uma parvoeira completa, e eles mais não fizeram que dar-se as mãos e, finalmente, olharem-se nos olhos. Num encantamento que apagou a noção da viagem e dos locais percorridos à pressa, dos Restauradores ao Comércio, da Sé às Portas do Sol, da Graça a Santa Clara, dos Barbadinhos a Sapadores, da Penha de França à Fonte Luminosa, do Chile à Figueira, do Rossio à Anunciada, ele, que tanto, tanto tinha para dizer, sussurrou apenas: - És o meu amor pequenino, ao que ela respondeu, com aquele sorriso que confere verdade a tudo: - Tinha de voltar porque és o meu oxigénio; lá sufoco! Sustiveram ambos a onda de palavras que se entrechocavam na garganta como cavalos diante da mossa no Pálio de Siena, e sentiram-se como se estivessem no meio de uma multidão tornada de repente transparente, ou solitários na última fila de um cinema cheio a deitar por fora.

E mais nada. Mesmo que ele soubesse tocar braguesa, concertina ou cavaquinho, e o jovem tivesse, por milagre, um ali à mão, ele não lhe poderia mostrar a sua arte porque uma só pessoa não forma uma roga. Nem um beijo trocaram. Ao sol da Rua da Palma (onde eu um dia encontrei a minha alma, dizia o fado), ela notou que ele não estava bem, tirou os sapatos, subiu para o assento e começou a rodopiar com tal ligeireza e velocidade que transformou a sua saia num verdadeiro chapéu-de-sol para o cobrir dos seus raios. Feita sombra, ele abriu os olhos ainda feitos à luz, olhou em redor e para cima e, sentindo a engenhoca a elevar-se no ar pela força do vórtice, como se da Passarola de Frei Bartolomeu de Gusmão se tratasse, percebeu qual a verdadeira e justa arquitectura da perfeição deste mundo, risco sublime da mão de Deus.

Quando o Tuk-Tuk parou no Largo da Anunciada, ele agarrou-lhe o rosto com ambas as mãos, aproximou o seu do dela, ouvindo-a dizer: - Não podes dar-me o beijo que ambos desejamos porque o contrato de liberdade provisória assim o exclui, mas, mesmo se longe, estarei sempre contigo. Abriu a portinhola, desceu e dirigiu-se ao Elevador do Lavra, sempre com aquele passo de rainha, entrando nele sem se voltar, como aconteceu no dia da sua ascensão. Ele estremunhado, deixou a “Nau de nha ilusão” e, com música nos ouvidos, sentou-se no primeiro banco que encontrou.

Deve ter adormecido novamente, pois que voltou a sentir uma mão no ombro. Desta vez era uma Agente da PSP que lhe perguntou: - Sente-se bem Senhor? É que já subi e desci a Avenida três vezes e está aqui sempre na mesma posição. Precisa de ajuda? Balbuciou um muito obrigado, está tudo bem, estava só a descansar, obrigado. A Agente afastou-se com o olho nele que, confuso, como se tivesse qualquer coisa muito urgente para fazer, tirou carta e pena da sua mochila e, lembrando-se das últimas palavras ouvidas durante o sonho (teria sido um sonho?),e usando-as como mote, escreveu de um só golpe, sem hesitações ou emendas: 

Sempre contigo, um beijo

Foi grito que me encheu o dia

Trocou esta calma por desejo

Pondo-me a sonhar como queria
 

De longe sentimentos afloram

Tão fortes de não poder calar

Porque os corações onde eles moram

Mais juntos não poderiam estar
 

E sem arte para gritar quanto sinto

Sentei-me num banco da Avenida

E cheio de felicidade, e não te minto
 

Ofereço-te deste modo a minha vida

De poeta que tem em ti o absinto

E é de corpo e alma a coisa querida!

 
Abraço.

Lisboa, 11 de Setembro de 2014
 
Octávio Santos


** Este São Pafúncio nada tem a ver com o Pafúncio, marido da Marocas, que George Mc Manus nos ofereceu de 1913 a 1940 em banda desenhada. O Santo foi um cristão egípcio, que viveu no século IV, perseguido e torturado por isso, e este uma personagem convencida, pretensiosa e arrogante, “virtudes” herdadas por aqueles pafúncios que temos todos hoje de aturar. A história repete-se e a literatura profetiza.

 

8 comentários:

  1. Sublime!
    Isto não é um sonho, é um poema que mais parece resultar de um “binómio fantástico”.
    Um abraço,
    T

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    1. Cara Cristina,
      Acertou em cheio! Sem inventar nada, segui Rodari e procurei na Avenida o “binómio fantástico” na sua Gramática da Fantasia, como a Carlota nos ensinou na Culturgest, descartando o “pombo/parquímetro”, o “elevador/cachorro quente” e o “diamante/grua”, por exemplo, para me fixar no “Tuk Tuk/dormiente” e partir daí para a viagem sonho, tendo embarcado a passageira ideal que inspirou o poema. Tudo o resto é acessório e o seu sublime é exagero.
      Um abraço
      Octávio

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    2. Quando adjectivei de "sublime" referia-me à forma extraordinária como com meia-dúzia de elementos, rapidamente constrói um texto tão rico como este. Aliás, a maioria das crónicas que tem publicado neste blogue disso têm sido exemplo. Enfim, com a destreza que tem para a escrita faz lembrar uma espécie de “malabarista da palavra”. Continue com as suas crónicas, exercícios estes que nos despertam, divertem, emocionam e encantam.

      Abraço
      T

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    3. Cara Cristina,
      Continuo a não aceitar o favor do seu “sublime”, senão como classificar aquilo que realmente o é? É verdade que com meia dúzia de elementos rapidamente construo um texto, mas essa meia dúzia são retirados de uma cartola cheia de 70 anos de recordações, e quer o acaso que me venham à mão aqueles que servem para o que quero dizer, e tudo em poucas linhas, porque, como sabe, aguento bem 100 ou 200 metros mas não tenho fôlego para a maratona, e a prova viu-se na Avenida, que tive de a fazer em 6 etapas. O ser eu um “malabarista da palavra”, aceito-o, não no sentido que lhe quer dar, mas naquele que descrevi em 12 linhas no meu texto “Circo” que está na página 71 dos meus Hieróglifos, e que, para memória, transcrevo:
      “Vejo-te o avesso do palhaço mimando homem de forças: entra na pista com seu haltere de plástico, fingindo enorme esforço, ora numa perna, ora noutra, esgares e vocais a condizer.
      No auge dos ohh! do deslumbrado público, sai de cena como bailarino em pontas, equilibrando o utensílio no dedo mindinho, deixando atrás de si um coro de palmas e risos.
      Estiveste, estás, estarás? na vida lançando no ar o teu férreo haltere como se de suposto se tratasse. Atónita, a assistência espera silenciosa: nem ohh! nem ahh!.
      No fim, quando os pesos sobre ti se abatem e da arena tentas em vão erguer-te, irrompe o coro de risos e palmas, na ignorância de que era a valer.”
      Despertar e divertir faz parte de objectivos que nem sempre alcanço, emocionar e encantar é já coisa subjectiva e devo atingir poucos alvos.
      Abraço
      Octávio

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  2. Caro cronista,
    Faltando ao prometido, nada mudou desde a última crónica. Continua na Avenida da Liberdade, felizmente desta vez a dormir, o que, a meu ver, incomoda menos o leitor e eleva para 9 o número dos que dormem nos bancos de jardim. Se a Agente da PSP o tem posto ao fresco por vagabundagem, tinha-nos poupado o soneto delicodoce tão impróprio da sua idade que, afinal é muito superior àquela que apregoa visto que já em 1913 lia as histórias aos quadradinhos do Pafúncio e da Marocas. Nem o Manuel de Oliveira!
    Sem rancor

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    1. Caro (a) Anónimo (a) sem rancor,
      O prurido que lhe provoca eu continuar na Liberdade e o seu reparo à jovem Agente por não ter actuado pela cartilha do antigamente, revelam um saudosismo inquietante, e já que falei de cartilha, dado que sabe escrever, devo presumir que leu a Cartilha Maternal que João de Deus publicou em 1877, não sendo então o (a) jovem irreverente que eu pensava, mas um respeitável ancião de 137 anos. Nem o Matusalem! Com a moda dos referendos separatistas, espero que haja brevemente um na Zona J e que vença o sim, para deixarmos de viver na mesma cidade.
      Sem rancor
      Octávio

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  3. Respostas
    1. Seria fantástico se soubesse de onde vem o elogio, mas de qualquer maneira muito obrigado.
      Octávio

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