quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Dez quintilhas pelas Avenidas Novas numa manhã de Outono


















Do passeio de lá, de lá do outro lado

Uma mulher descia lenta a minha rua

Atracada a um tipo, os dois de braço dado

Trauteava ela o que a mim pareceu ser fado

Tudo sem alma porque a voz não era a tua.

 
Numa árvore, periquitos verdes de colar

Agitam-se entre os ramos como perdidos

Nem trinados, nem gorjeios, nem cantar

Penosos lamentos,  metálicos,  sofridos

De quem perdeu, ou roubaram, o seu lar.

 
O Miguel já não mora na Elias Garcia

Nem o velho louco grita à minha esquina

Ontem uma mãe com a sua menina

Porque só para ela a pedir se atrevia

Tenho fome, mas ela, ela, eu não queria.
 

Atrás da igreja o gringo da Re-Food

Que vai acumulando coisas de trincar

É uma nova versão de Robin Hood

Pedindo a pobres para a pobres dar

Que já nem os ricos se deixam roubar.

 
Lojas que fecham, lojinhas que abrem

Umas com três meses já de porta fechada

Via Intimidades que vendia o que sabem

É só mais um baú cheio de cangalhada

Vazio. Nada que lá vende merece dentada.
 

Chineses que não sabem onde estão

Saem como cheia do Júpiter Lisboa

Irão de visita à Igreja da Conceição?

Ou a saltar no tuk tuk pelo Conde Barão

Correm p’la cidade, sem destino, à toa?

 
Cada supermercado tem seu pobre à porta

Na Versailles, na Choupana, uma romena torta

Arrumadores de carros com línguas estranhas

Defendem-se de concorrentes cheios de manhas

Outro pede um euro para o funeral da Mãe morta.

 
Agora que só de pão vive o homem (e a mulher)

Do Bairro, do Pão de cada dia, da Portuguesa

Comas lá empadas, comida de garfo ou de colher

É de Fábrica, de Padeiro, de Mafra ou de Alenquer

É sempre pão e mais pão que te põem na mesa.

 
Há também escolas de crochet e de tricot

Outra de línguas com alunos na vitrina

Farmácias vazias onde até falta a aspirina

Um carrinho de bebé empurrado pelo Avô

Penicos na cabeça de caloiros de Medicina.

 
E a Igreja de Fátima e a nova Junta de Freguesia

E velhas que contam doenças paradas no passeio

E velhos que arrastam as pernas e o dia a dia

E uma mulher bonita com um homem feio

E as Avenidas continuam Novas, quem diria!

 

Abraço.
 

Lisboa, 26 de Novembro de 2015

Octávio Santos

5 comentários:

  1. Penso que nada que eu vá comentar me agrada para transmitir o que o texto me fez sentir esta noite. Obrigada Octávio! (DFC)

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    1. Cara Deolinda,
      Muito obrigado pelo seu obrigada! Não esperava que, com umas singelas quintilhas em estilo reportagem provocasse mudez.
      Abraço
      Octávio

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  2. Caro autor,
    Que bom poder passear
    Pelas Avenidas Novas
    E conseguir burilar
    Sempre, sempre, ideias novas

    Porém, não é para todos
    Olhar, sentir e captar
    Fá-lo este nosso autor
    Com perfeição de espantar

    Se tanta facilidade
    Nos permitisse pensar
    Talvez a humanidade
    Pudesse um dia mudar

    Que o poeta me perdoe
    Esta minha ousadia
    Não é que seja pateta
    Foi o que me veio à pinha ( F. I. )


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  3. Desculpe, mas tenho que corrigir: «Que me perdoe o poeta»........
    Quem te manda a ti sapateiro,tocar rabecão? ( F. I. )

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    1. Cara anónima F.I.,
      Realmente a última quadra estava a estragar a rima beijada. Agora está melhor, mas eu daria também um jeito ao último verso para o fazer beijar com “ousadia”, assim: “Mas veio-me à pinha na pia”. Muito obrigado por continuar a comentar.
      Octávio

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