quinta-feira, 19 de junho de 2014

Arrumar galopes e vendavais que nos vão no peito




O título não é meu mas do Curso de Poesia que o Professor José Fanha ministrou no El Corte Inglès, de 10 de Fevereiro a 5 de Março. 7 lições, cada uma com um título que não teve qualquer atinência com o desenrolar das mesmas,  não se vislumbrando galopes e vendavais a merecerem arrumação, talvez porque, ao contrário daquilo que se esperava,  não foi dada oportunidade aos assistentes para falarem das suas experiências poéticas e muito menos para dizerem um pedacinho que fosse do fruto dessas experiências, embora, no decorrer das lições,  tivessem sido criadas excepções, a que me referirei no momento próprio


De 27 de Março a 22 de Maio, com um interregno para o “obrigatório” 25 de Abril, escrevi 8 textos sobre as 4 sessões de Escrita Criativa em que participei na Culturgest, vendo as audiências precipitarem, talvez porque quis fazer de mais. Aprendida a lição, não vou escrever 7 textos sobre as 7 lições do Professor Fanha, mas apenas um, no qual vou tentar contar tudo aquilo que aprendi, não sem dizer que a assistência, de 60 pessoas com uma média etária acima dos 50, era composta por 80% de Senhoras e menos de 10 % de falantes. Agora, folheando todas as notas que tomei ao longo das lições, vejo que me é impossível escrever em 3 páginas tudo aquilo que aconteceu e foi dito, pelo que, me limitarei a dar umas dicas, com a pretensão de pôr os meus leitores a pesquisar sobre aquelas que lhes despertarem mais interesse, transformando este texto em mais uma “lição”, desta vez livre e sem mestre, limitando-me a repetir o que disse Fanha (J.F.):

 

- A poesia é a linguagem dos símbolos e um dos pilares da construção de Portugal;

 

- J.F., que diz muito bem poesia, nitidamente inspirado por João Villaret, foi com Ary dos Santos, Mário Viegas, José Jorge Letria e outros, um dos jovens que fizeram tremer o antigo regime com as suas poesias;
 
- Poetas árabes houve que muito influenciaram a poesia portuguesa, como Al-Mu’tamid e Ibn El-Arabi, e destes e doutros e de muitas outras coisas, fala o arabista Adalberto Alves nas suas obras, “Ecos de um passado árabe”, “O meu coração é árabe” e “As sandálias do mestre”;
 
- Houve também poetas judeus com grande influência na nossa poesia, e não só, mesmo após a sua expulsão: Jorge Luís Borges, descendente de judeus portugueses, escreveu o poema “As chaves de Salónica” sobre a única coisa que os judeus expulsos da Península Ibérica levaram para o exílio, as chaves da casa que deixavam. Herberto Hélder é um dos nossos grandes poetas de origem judaica;
 
- Enquanto Miguel Torga disse que Camões era um cedro desmedido na pequena floresta portuguesa, Eduardo Lourenço afirmou que Fernando Pessoa tinha o sonho de ser um super Camões;
 
- No século XVII muitas freiras, inspiradas no Cântico do Cânticos, escreveram poesia: Soror Violante do Céu, Soror Maria do Céu e Soror Mariana da Glória, entre outras;
 
- No século XVIII a única Mulher a afirmar-se na poesia é a Marquesa da Alorna (Alcipe), primeira Mulher ligada à maçonaria, mas no século XIX não há nenhuma poetisa portuguesa digna desse nome;
 
- No século XX surge o escândalo Florbela Espanca, violenta nos temas e explícita na linguagem, que abalou a fechada classe elitista alentejana. Há ainda Judith Teixeira, poetisa sáfica, “vulcão e brasa ardente” no dizer de Zenóbia Collares Moreira, que viu a sua obra “Decadência” apreendida por “imoralidade” e por constituir “literatura decadente”, tal como “Canções” de António Botto e “Sodoma Divinizada” de Raul Leal;
 
- Afirmou J.F. que Sofia de Mello Breyner não fazia versos de amor; pedi licença e li o seu pequeno poema “Ausência”. Contrapôs J.F. que se quis referir ao amor carnal, sendo Sofia, nesse particular, muito diferente de Maria Teresa Horta que privilegiava o tema;
 
- Aconteceu que um rato, um pequenino mus musculus, apareceu a espreitar por baixo da toalha da mesa do buffet, atraído talvez pelo odor das bolachas. Um certo histerismo colectivo levou J.F. a alertar a responsável pelo Âmbito Cultural do ECI que prontamente compareceu, pedindo desculpa e dizendo que seguramente o animalzinho provinha do restaurante, e que deveria suspender a lição para permitir a intervenção da brigada de desratização, tendo sido contrariada unanimemente pela assistência que quis continuar a lição mesmo com a presença do inofensivo murídeo. Pensei em Ratatouille, o rato cozinheiro;
 
- No dia seguinte apareceu a mesma Senhora a pedir desculpa do episódio do rato (já neutralizado pelos colegas da manutenção, o que provocou ohs! de repúdio na assistência);
 
- J.F. falou das correntes literárias preponderantes durante o Estado Novo: Modernismo, Neorealismo e Surrealismo, referindo a propósito Fernando Pessoa, Manuel da Fonseca, Soeiro Pereira Gomes, Alves Redol, Joaquim Namorado e Políbio Gomes dos Santos;
 
- Falou da censura da escrita, da imprensa, do teatro, e disse que Snu Abecassis, casada com um industrial adepto do Estado Novo, escondia livros proibidos na Lusalite que era a fábrica do marido. Chico Buarque para escapar à censura da ditadura brasileira escreveu canções com o pseudónimo da Julinho da Adelaide, entre as quais “Acorda amor”;
 
- Pedi licença e perguntei se hoje não havia poetas que escrevessem contra o estado das coisas: disse-me que Nicolau Santos (Expresso) escreveu ultimamente um livro de poesia de denuncia. Falei-lhe e mostrei-lhe o livro” Manifesto Anti Crise”;
 
- J.F., saindo da poesia, disse que o neo-realismo começou em Portugal na pintura dez anos antes da escrita, com o quadro “O Almoço do Trolha” de Júlio Pomar, que o surrealismo nasceu em França em 1924 e chegou a Portugal em 41, que o movimento Dada nasceu em Zurique em 1916, por um grupo que recusou a barbárie da 1ª Guerra e resolveu fazer tábua rasa de tudo incluindo a arte, decretando a morte de todas as formas de arte existentes. Com Freud nasceu uma escrita e uma pintura inconsciente e automática. Falou ainda de Magritte, Dali, Klee, Kadinsky e Miró, e da recuperação tardia da arte negra e daquela infantil;
 
- Afirmou J.F. que o surrealismo tem dois lados, a liberdade prática e a provocação. Só houve, e há, uma Mulher surrealista em Portugal, a Isabel Meireles, ceramista com 85 anos. O último dos surrealistas, Alípio de Freitas, que foi padre, casou agora, cego, aos 83 anos, e foi cantado por Zeca Afonso;
 
 
- Para J.F., na mudança do século dois homens deram volta à cabeça da cultura europeia; Einstein e Picasso. Os impressionistas, que reproduziam os pontos de luz que lhes feriam os olhos, Balzac, Flaubert, Victor Hugo e Balzac, já o tinham tentado antes. Os futuristas D’Annunzio, Maiakowsky e Almada, endeusando a máquina, também deram a sua contribuição. Em Portugal, o Grupo de Orfeu, Amadeo de Souza-Cardoso, Santa Rita Pintor, Domingos Alvarez, Keil do Amaral, Leopoldo de Almeida e o próprio António Ferro, empurraram o país para uma espécie de Modernismo Lusitano. Depois, o 25 de Abril, feito por “militares que não viram os filhos crescer”.  O certo é que a verdade é sempre difícil de estabelecer: Mário Sá Carneiro suicidou-se no quarto do hotel com cianeto ou estricnina? Ou foi no metrô?
 
- Desta vez J.F. falou torrencialmente sobre poetas e outros artistas estrangeiros da sua predilecção, numa interessantíssima conversa que, acelerada pela pressa de sair mais cedo para assistir a um concerto de Pete Seeger, nos inundou de noções sobre os nomes abaixo citados e, sobretudo, vontade de os descobrir. Assim, percorreu uma galeria onde pontificaram Woody Guthrie, o citado Pete Seeger, Jacques Prévert, Berthold Brecht, Pablo Neruda, Gabriela Mistral, Wislava Szymborska , Czeslav Milosz, Jorge Luiz Borges, Federico García Lorca (Llantopor Ignazio Sánchez Mejías), Jean Cocteau ( que dedicou, tal como Pablo Neruda, um poema a Llorca), Tonino Guerra e Lawrence Ferlinguetti, último sobrevivente da beat generation, proprietário da livraria City Light em S. Francisco, o qual tem um poema sobre o Elevador de Sta. Justa, que atribui a Gustave Eiffel e não a Raúl Mesnais du Ponsard.  Pedi licença e disse a J.F. que, tinha comigo um poema de um poeta português sobre o mesmo tema, este sobre todos os ascensores de Lisboa, tendo dito, com sua autorização, o meu poema “Viagem de Fim de Semana em Ascensor”, sem revelar a autoria. Descobri depois que Vasco Graça Moura também tem um poema sobre o Elevador de Sta. Justa;
 
- Falando de traduções de poesia, J.F. considera que as traduções que fez de Berthold Brecht são melhores que aquelas de Paulo Quintela, e disse que há dois caminhos para a tradução: aquele representado por Vasco Graça Moura, com um rigor que espartilha o poema, e o de Eugénio de Andrade, menos rigoroso, o que lhe dá outra alma;
 
-Na quinta lição entreguei a J.F. um exemplar do livro “Manifesto Anti-Crise – Da revolução dos cravos à revelação dos cravas”, na sequência de ele ter citado os poetas que escreveram contra a ditadura, e de eu lhe ter perguntado se hoje não há poetas a escrever contra este estado de coisas. Nesta última lição, J.F. puxou do livro, diz à assistência que fui eu que lho fiz conhecer e começou a fazer considerações sobre o mesmo:
 
- Que bastava o título sem sub-título. As pessoas escrevem coisas inúteis que não acrescentam valor à obra, antes pelo contrário, dizendo que aquela tirada da “revelação dos cravas” era uma graçola descabida. Depois abriu o livro e anunciou que ia dizer uma poesia de uma tal Carmo Oliveira, intitulada “Seca” .
 
- Depois de a dizer, declarou que a mesma começava e acabava admiravelmente: “Nos rios quase secos do nosso desespero” era, para ele, uma frase poética de grande alcance. “O Governo por Despacho autorizou a importação de crocodilos”, era frase que ele usaria numa poesia anti-crise, como refrão entre cada verso de denúncia do estado das coisas. Achou inútil o jogo de palavras usando o nome dos políticos e dos partidos, que, segundo ele, nada acrescenta tirando espessura ao poema. Salvou esta parte:

 


“Portas do céu fechadas a qualquer pingo de chuva


 Secam os leitos dos nossos rios e barragens


 Vendo-se já aparecer os periscópios


 Dos submarinos da nossa vergonha,


 Assentes no fundo das docas de um país que está


 Na eminência de o tocar definitivamente, e nele ficar”.
 
Para mim, esta foi a melhor parte das lições do Professor José Fanha, como foi bom eu ter dito o poema “Ausência” de Sofia de Mello Breyner; mas o melhor foi eu ter dito o meu “Fim de Semana em Ascensor” na sexta lição, e estas foram as excepções de que falei no fim do primeiro parágrafo deste texto.

Nota - Deixo mais três links:

- O primeiro para uma lista de autores e obras citadas (algumas ditas) por J.F. no decurso das lições;
  
    - O segundo para a história de Pedro Oom  “O Coelhinho que nasceu numa couve”;
 
    - O terceiro para um vídeo no qual Mário Viegas recita  um excerto de “A Cena do Ódio”de
    Almada Negreiros.


Lisboa, 19 de Junho de 2014
    Octávio Santos






3 comentários:

  1. Caro Octávio,
    Muito apreciei o “relato” deste curso, embora não concordando quando refere que “não se vislumbraram galopes e vendavais a merecerem arrumação”, porque a galope parece ter sido ministrado o curso e vendavais, certamente provocados pelo mus musculus não vindos do peito, mas do restaurante.
    Não posso também deixar de (a)notar:

    - A “obrigatoriedade” do interregno para o 25 de Abril – que tirania!!!!
    - A estranha coincidência de J.F. abrir o livro “Manifesto Anti-Crise – Da revolução dos cravos à revelação dos
    cravas”, no poema “Seca”;
    - A astúcia do autor desta crónica, por ter levado a sua “avante”.

    Mas não quero terminar sem me referir à “lista de autores e obras citadas”, da qual destaco três textos de três dos autores mencionados, que me parecem arrumar de formas diferentes “galopes e vendavais que nos vão no peito”:

    RUI KNOPLI

    Carta ao poeta Eugénio Evtushenko

    Não te arrependas de nada.
    Um verso está sempre certo
    mesmo quando errado. A verdade
    também, mesmo quando dói

    ou fere ou parece inoportuna.
    A verdade nunca é inoportuna.
    O teu inconformismo é o preço
    da nossa libertação e teus versos

    florescem no coração do povo.
    Não. Não te arrependas de nada.
    Não torças o verso, não obrigues
    a palavra: um poeta está

    sempre certo. Não permitas que o óxido
    dos políticos entre na lâmina
    dos teus versos. Um poeta não se vende,
    não se compra, não se emenda.

    A um poeta corta-se-lhe a cabeça.
    E uma cabeça cortada não dói, mas
    tem uma importância danada.

    in "Mangas verdes sem sal"


    NUNO JÚDICE

    ATÉ AO FIM

    Mas é assim o poema:
    construído devagar,
    Palavra a palavra,
    e mesmo verso a verso,
    Até ao fim.
    O que não sei
    É como acabá-lo; ou, até, se
    O poema quer acabar.
    Então peço-te ajuda:
    Puxo o teu corpo
    Para o meio dele, deito-o na cama
    Da estrofe, dispo-o de frases
    E de adjectivos até te ver,
    Tu,
    O mais nú dos pronomes.
    Ficamos Assim.
    Para trás, palavras e versos,
    E tudo o que Não é preciso dizer:
    Eu e tu, chamando o amor
    Para que o poema acabe.

    in "Pedro, lembrando Inês"


    ANTÓNIO OSÓRIO

    O que é isto?
    Uma perdiz embalsamada
    E ela finge que está viva?

    in "A Mitologia Fadista"

    Abraço.

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    1. Caro(a) Anónimo(a),
      Muito obrigado pela apreciação do “relato”, concordando que galopes houve mas breves, e só por alargamento de trotes que, também eles brevemente, e para ultrapassar obstáculos, alongaram o passo que foi o mote andante das sessões. Vendavais só realmente os provocados pelo ratinho, comensal ou cozinheiro do restaurante, no imaginário bestiário das Senhoras presentes. Depois, achei graça ao “binómio fantástico” 25 de Abril/tirania e, confessando que tenho conhecimento de passes da magia para obrigar a abrir livros na página justa, como o Luís de Matos nos faz escolher o 7 de espadas em qualquer baralho, declaro não ter astúcia suficiente para impingir aquilo que segundo o Avante resolveria o problema da Seca. Quanto aos poemas lindos que elegeu para brindar os leitores, lembro que aquele de Rui Knopfli, retirado da sua obra “Mangas Verdes sem Sal”, é aquele que eu disse na apresentação do meu “Moínho de Vento,23”, no dia 5 de Setembro de 2013, na Biblioteca José Saramago, em Loures. O de Nuno Júdice, autor admirável, leva-me a transcrever este do seu livro “Meditação sobre Ruínas”:
      Confissão
      De um e outro lado do que sou,
      da luz e da obscuridade,
      do ouro e do pó,
      ouço pedirem-me que escolha;
      e deixe para trás a inquietação,
      a dor,
      um peso de não sei que ansiedade.

      Mas levo comigo tudo
      o que recuso. Sinto
      colar-se-me às costas
      um resto de noite;
      e não sei voltar-me
      para a frente, onde
      amanhece.

      Quanto à maravilha do luso-italiano António Osório, de quem Eduardo Lourenço disse ser “uma das nossas constelações poéticas mais inequivocamente originais” e “um canto enraizado no ritmo imemorial do coração”, mais não é que um haiku copiado com o mesmo descaro com que copio aqueles que me atrevo a escrever, muitas vezes após os ter ouvido da boca da inocência. De António Osório deixo-vos, pensando em mim, com o poema

      Os loucos

      Há vários tipos de louco.
      O hitleriano, que barafusta.
      O solícito, que dirige o trânsito.
      O maníaco fala – só.
      O idiota que se baba,
      explicado pelo psiquiatra gago.
      O legatário de outros,
      o que nos governa.
      O depressivo que salva
      o mundo. Aqueles que o destroem.
      E há sempre um
      (o mais intratável) que não desiste
      e escreve versos.

      Abraço
      Octávio




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  2. Caro autor, Ostinato Variabile, o seu blog desta vez deu imensa luz aos comentadores, pelo que, sinceramente, o meu apreço estende-se a todos, os críticos e os menos críticos, porque o que não aprecio é a cultura do "apenas elogio", do "apenas gosto - tipo facebook", embora eu não esteja a dizer mais do que "gostei", mas c/muitas palavras. Se estas palavras não são de todo poesia, é porque não sou poeta (mas gostaria). Para terminar c/algo de mim, aproveito para destacar o poema da Sofia - "Ausência" - isto porque ainda a ouvi várias vezes nos anos 60 e princípios de 70 a dizer poesias num local no Chiado junto a umas escadinhas. (DFC)

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