quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Bom Ano Novo no último dia (in)útil, perigosa incitação ao não cumprimento das regras, reivindicação de estacionamento abusivo, melros e rolas, lojas & filiais de beneficência, velhas canções revolucionárias, Saúde, Educação, Justiça, Francisco e Francisca, IDE da Horta no Lis, livros do século XVIII ao XXI, doutas citações, e muito mais que quis dizer e não soube


Como há muito que tenho para mim que a desobediência é uma virtude e um dos motores que faz avançar a humanidade, fiquei confortado por saber que começa a ser reconhecida como tal, merecendo louvores alguns episódios menores que dão força ao conceito. Dois carabinieri são chamados a uma grande superfície de uma cidade italiana, para darem legal seguimento à detenção de um menor que fora apanhado à saída com cadernos não pagos. Vi os jovens militares num popular programa televisivo, contando que ao chegar ao local, e depois de falarem com o menino, pagaram os cadernos na caixa, convenceram os gerentes do estabelecimento a não apresentarem queixa formal, e levaram a criança a casa. Palmas e louvores a este grave acto de desobediência, mais grave ainda por se tratar de forças da ordem. Apenas um dos intervenientes em directo desafinou o coro de aprovação do açucarado episódio para dizer que, acabando de ser operado gratuitamente num hospital público, não compreendia porque é que o Estado, que deveria pôr a educação ao mesmo nível da saúde, não fornecia grátis todo o material escolar aos alunos da escola pública, levando crianças necessitadas ao acto irreflectido de roubar cadernos, e pondo assim, neste caso, o ónus da solução nas mãos de dois jovens militares que, para aplicar justiça tiveram de praticar um acto não conforme com o cumprimento dos seus deveres.

A reflectir sobre o acima expresso estava eu no carro, a ouvir música na Antena 1, no estacionamento reservado aos funcionários dos Inválidos do Comércio; estaciono sempre ali, e não no parque reservado às visitas, porque tenho vistas mais amplas, rolas a marchar à SS e melros a saltitar como políticos diante da torta do poder, velhos a arrastar os pés em passeios higiénicos de auto prova de vida, auxiliares de saúde, de batas e socos brancos, a fumarem às portas, quando me passou pela cabeça que um dia, um vigilante mais zeloso me poderia interpelar, fazendo-me desandar daquele lugar que não me pertence por regulamento. Estou-me a ver a responder-lhe que nunca vi mais de 7 ou 8 carros naquele local que tem lugar para uns 80, e que por isso não me chateasse com merdas dessas porque, se até agora me tenho calado a certas coisas muito piores que por lá vejo para não agravar a situação de quem lá tenho, e cala-te boca, não me faça agora passar dos carretos por uma história que não vale um tostão furado. O certo é que se tal ocorresse, e a poderosa e bem encostada instituição de beneficência - o maior proprietário imobiliário na grande Lisboa – cravasse comigo na justiça, eu não teria meios para me defender do meu pequeno delito de desobediência às regras.

E aí, lembrando-me da cirurgia sem custo do opinion maker da RAI que advogou o direito aos cadernos grátis, pus-me a perorar, de mim para mim, igual estatuto para uma justiça que me pusesse em pé de igualdade com quem a pode pagar, e sabemos todos quanto. Saúde, Educação, Justiça, e esqueço a paz, o pão, a habitação do Sérgio Godinho, para todos. O que não é uma utopia, agora que Francisco está em Roma a fazer o que deve, e que de Francisca esperamos todos que possa, assim a deixem, pôr em prática os seus princípios. Parece que falar hoje de justiça, reclamando justiça para a justiça, seja apanágio de gente da esquerda quando deveria ser uma obrigação de todos, que a todos, e tudo, beneficiaria. Mesmo os ultra liberais de hoje, aqueles a que eu chamo os da freenança, que justamente repetem que a salvação do país, e de todos nós, está no investimento, estrangeiro ou nacional que seja, teriam numa justiça justa - e não é um pleonasmo -, um aliado de peso, senão o maior.

Recordo-me de ter acompanhado uma vez o então Presidente da AICEP, Dr. Basílio Horta, a Leiria, para uma sua intervenção numa sessão da AERLIS dirigida a empresários da região. Quando ele falava entrou uma Senhora a bater saltos altos e a chocalhar pulseiras que, sem a contenção própria e natural de quem está atrasado, se sentou na primeira fila. Acabada a oração do Presidente da AICEP, no período de perguntas e debate, a Senhora, que se apresentou como advogada, num exercício de auto prova de vida, perguntou qualquer coisa relacionada com o investimento estrangeiro e o seu preocupante recuo. Obteve como resposta que, na sua qualidade de agente e actor da justiça, deveria saber que o maior responsável pela retracção do IDE, aquele que mais atingia a competitividade do país na sua atracção, era precisamente a justiça e não os salários, as greves, os custos de energia ou a fraca produtividade. Qual é o empresário que vai investir num país sabendo que, caso tenha qualquer diferendo a dirimir nos tribunais, poderá ter de esperar 10 ou mais anos pela solução?

E eu, que de justiça percebo tanto como de economia, ponho-me a ler para tentar pescar qualquer coisa que valha a pena, atrevendo-me a aconselhar-vos a leitura de dois livros sobre o tema, um de 1764 e outro de 2015, os quais, apesar dos mais de 250 anos que os separam, correm nos mesmos carris. O primeiro, “Dos delitos e das penas”, de Cesare Beccaria, verdadeira bíblia para todos os agentes da justiça, e dele escreveu José de Faria Costa, professor catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e Presidente da Mesa da Assembleia Geral do Instituto de Direito Penal Económico e Europeu, no prefácio da tradução de 2014 (FCG):

«Não temos a menor dúvida em considerar que “Dos delitos e das penas” é cerzido por uma fina tessitura cujo fio condutor pode ser visto na ideia forte do garantismo. No entanto, o fascínio deste programa de política criminal - em verdadeiro rigor temos para nós que o conteúdo do livro se traduz em um real e “actual” programa de política criminal e daí a sua perenidade – reside na simultânea mistura de duas coisas aparentemente antagónicas: por um lado, a afirmação inequívoca de um preciso e extraordinariamente bem definido horizonte intencional que se circunscreve na preservação e afirmação dos princípios de igualdade e de garantia; por outro, o carácter assistemático e de unidades fragmentadas com que o texto é formalmente apresentado…. Vale a pena ler Beccaria hoje?... vale não só a pena como é até imperioso que se leia e releia Beccaria.»

O segundo, “Política e Corrupção”, do meu amigo Paulo Saragoça da Matta (A), Licenciado em Direito pela Universidade Católica Portuguesa e Mestre em ciências jurídico-criminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, cujo endereço do conteúdo está todo no prefácio do autor, repetido na contracapa:

«Estamos perante um conjunto de seis textos que se organizam em torno a três temáticas. Quatro desses textos, conferências proferidas em 2013 e 2015, debruçam-se sobre temas com o enriquecimento ilegítimo, o branqueamento de capitais e o financiamento ao terrorismo, a disciplina legal e regulatória do mercado financeiro, e, por fim, a corrupção na função pública e administrativa. Uma última conferência, também de 2015, analisa a jurisprudência constitucional na área do processo penal, aqui se analisando questões tão importantes e candentes como os prazos de recurso nos mega processos e nos processos de excepcional complexidade, os meios de prova e o papel do consentimento do arguido na utilização de provas através do próprio corpo, o dever do exame de toda a prova relevante para a condenação em sede de julgamento, o interrogatório do arguido “às cegas”, a recorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça e, por último, a delimitação do núcleo essencial dos direitos processuais das partes.»

Garanto-vos que se se derem ao trabalho, tão útil como agradável, de ler estas duas obras, saberão muito mais sobre o que se passa hoje nos tribunais portugueses, que aquilo que a leitura diária do Correio da Manhã ou a visão de todos os programas da TVI vos dá, e não estou a falar da "Quinta das Celebridades", que isso é cultura nacional popular.

A)    Gostei muito que o Paulo descesse ao meu nível - taxistas e barbeiros - citando o aforismo popular português: “Quem cabritos vende e cabras não tem, de algum lado lhe vem!”

Boa leitura, quando acabar a euforia do réveillon, e conseguirem retirar toda a purpurina dos cabelos.


Abraço e Bom 2016 a todos.

Lisboa, 31 de Dezembro de 2015
Octávio Santos

2 comentários:

  1. Caro autor,
    mais uma crónica para nos «obrigar» a pensar nas desigualdades existentes neste país.A sua reflexão sobre desobediência,transportou-me para as muitas crianças,hoje rotuladas de hiperativas com déficit de atenção.Todos sabemos que elas possuem um elevado grau de inteligência e sabedoria para além da sua idade.Também elas são desobedientes e hostis às figuras de autoridade.Não estará nelas a esperança da mudança da raça humana? (F.I.)

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    1. Cara Anónima F.I.,
      Felizes os que, como nós, são “obrigados” a pensar nas desigualdades; menos felizes aqueles que são obrigados (sem aspas) a sofrê-las. Alguém terá de mudar o estado das coisas, e como as crianças são o futuro…(inútil frase feita porque será assim, sempre foi assim, quer queiramos ou não). Vamos agora ter um PR hiperactivo desde criança, com todas as características dessa sua condição, desobediente qb, estando eu curioso para ver se estas são “qualidades” aplicáveis no Palácio. Uma esperança de fresquidão já nos veio agora da escolha de Adriano Moreira para o Conselho de Estado.
      Octávio

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