quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

Oscar Wilde e Roger Bacon + Kipling correm em socorro do cronista perdido entre as palavras, à procura daquelas que lhe servirão para as suas "altas" alquimias do espírito, levando-o nas suas ondas até à praia turca do teatro, onde, tendo chegado exausto, é salvo por Raio Fendente, compreendendo que nem tudo é possível nem permitido, embora, "no seu juízo perfeito" pense que…

“Tudo aquilo que se compreende está bem” escrevia Oscar Wilde quando descobre, na masmorra de Reading, que as distrações do espírito são o crime original, e que uma permanente atenção é o que faz descobrir, não só a perfeita consonância entre todos os acontecimentos da vida, como, num plano alargado, o acordo, também ele perfeito entre todos os elementos e movimentos da criação, ou seja,  a harmonia de todas as coisas. Poderia ficar hoje por aqui com a desculpa de  ter de me pôr a meditar na frase do genial homem de letras de origem irlandesa que tão caro pagou as suas opções de vida, mas caio sobre uma outra de Roger Bacon, aliás Doctor Mirabilis, que disse que “Nós podemos mais que aquilo que sabemos”, acrescentando, como empenhado alquimista, que “Ainda que tudo não seja permitido, tudo é possível”.

Mas, perguntareis vós, onde é que ele quer chegar com isto, e eu respondo que a lado nenhum porque me sentei sem ter a mais pequena ideia sobre o que iria escrever, e apanhado desprevenido pus-me a lançar bite sounds (vêem como estou atento!) numa vã tentativa de encontrar objecto para a escrita, e agora estou aqui a navegar à vista como um actor que esquece a deixa e olha aterrorizado para o ponto ausente da sua caixa, ou porque desmaiou ou porque foi assaltado por necessidade imperiosa. E aqui fez-se luz (juro que tudo isto se passa em tempo real), e agarrando o ponto pelos colarinhos este faz-me de ponto e lembra-me que também fiz teatro, uma só vez, e felizmente para os potenciais espectadores. Mas passo a relatar e com esta me safo mais uma vez.

Corria o ano de 1976 e o país era a Bulgária, aquele “onde tudo aquilo que não é proibido é obrigatório” como escrevi na pag. 25 do meu primeiro livrinho, era eu o “Senhor Cônsul de Portugal” (ver pag. 48 do mesmo in-fólio) e o meu amigo Yildirim Keskin (A) Conselheiro da Turquia. Acontece que este distinto diplomata, que foi mais tarde Embaixador em Lisboa, fosse também escritor e tivesse na gaveta, desde 1971, uma peça de teatro escrita directamente em francês - depois traduzida em turco e em grego -, intitulada “Un homme sain d’esprit”, à letra “Um homem são de espírito” mas que eu traduziria por “No seu juízo perfeito”, que em turco deu “Akli Basinda Bir Adam”, tendo a sua versão original sido publicada em 1979 e, aquela em grego, sido levada à cena e premiada no Festival de Teatro Amador de Corinto em 1983.

Yildirim Keskin, que traduzido em português seria Raio Fendente, já que todos os nomes turcos têm tradução - tu sais Octaviou que mon nom ça veut dire Foudre Tranchante (lembro-me da sua Mulher Gulgun, ou Rosa, e do Filho de ambos Jan, ou Vida) -, era um afabilíssimo diplomata e escritor que, na pureza da sua língua e na simplicidade do seu estilo, escrevia, em fuga surrealista diante da alegoria da existência, sobre a crise de identidade do homem só e impotente, com a sua racionalidade, perante o mistério universal que o rodeia, focando, como Pirandello, o contraste entre a aparência e a realidade. No seu primeiro romance “O Reino de Uma Noite”, de 1957, escreveu que “a felicidade é acreditar numa mentira” e, alguém que o conhecia e apreciava dele disse: “Escritor nihilista, nunca deixou de procurar o sentido da vida sabendo que o homem, mesmo tendo consciência da sua absurdidade, pode, através da vontade e da coragem, dar um significado à sua existência”.

Voltando ao teatro, disse-me um dia Yildirim que gostaria muito de ver a sua peça representada para avaliar o que daria sobre as tábuas de um palco, e daí tirar as suas conclusões para decidir sobre a sua publicação; quem sabe até se não a retocaria. Pedi-lhe uma cópia dactilografada (ainda a conservo), li-a, falei dela a colegas de outras embaixadas que eu sabia estarem para aí virados e, todos, pusemos em pé uma trupe de teatro ad-hoc para a inédita peça do Yildirim que, radiante, passou a dar todo o seu apoio e conselho a esta internacional banda de inconscientes a meterem-se numa aventura fora da sua zona de conforto (onde é que eu já ouvi esta?). Um turco, o autor, 5 franceses 5, uma belga, um holandês e um português, começaram então a estudar o original, cada um com a sua cópia, a escolha dos papéis foi consensual, e a ensaiar duas/três vezes por semana, ora em casa de um ora em casa de outro, sempre com um Volga negro do KDC - Комитет за държавна сигурност, os do guarda chuva assassino, lembram-se? -  à porta, já que aquelas repetidas reuniões noturnas que duravam até às 2/3 da manhã começaram a fazer espécie aos guardiões do regime.

Resumindo, devo dizer que eu, para além do papel de um fugitivo de si próprio (como uma luva…) num hotel de uma estrela, em convivência com uma nefelibata, um velho do contra, uma empregadinha, uma criada para todo o serviço impossível de aturar e um proprietário/recepcionista meio  filósofo, todos suspeitos para o esbirro que se apresenta em busca de um culpado no meio daquela bizarra e heterogénea companhia, tive também de construir o cenário com torres de iluminação e tudo o que se pode ver na imagem, incluído o relógio de parede feito com uma caixa de sapatos, sendo também minha a escolha da banda sonora, “A Catedral da Angústia”de António Vitorino d’Almeida, aceite entusiasticamente por todos. Assim, a “nossa” peça de teatro, sem figurinista nem guarda roupa (cada um com as suas coisas), em que cada um se maquilhava à porca janota, sem produtor, sem director, sem ponto, com cenógrafo (eu), um só (aquele grandão com barba, o pequenino sou eu) que fazia de sonoplasta, fotógrafo, luminotécnico e contra-regra, onde todos eram encenadores, que levou dois meses a ensaiar, foi levada à cena quatro vezes, digamos com agrado geral e, sobretudo, com a visível satisfação do autor que, feliz com o resultado, começou desde logo a tratar da sua publicação, o que veio a acontecer em 1979 como acima já referi.

Desta minha “aventura”, nunca mais repetida para o decoro e boa paz da arte de Talma, recordo agora coisas que gostaria de assinalar para encerrar esta crónica:

- As quatro representações tiveram lugar, primeiro na Residência do Embaixador da Turquia, e depois em casa do Conselheiro da Grécia e na de um outro diplomata que não consigo recordar-me agora e, a última, aquela da imagem acima, numa sala de festas posta à nossa disposição pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros búlgaro, depois de chegarem à conclusão (que alívio!) que não estávamos a conspirar contra o regime.  

- Nesta última pode-se ver que a parede de fundo está coberta por um lençol branco. Acontece que estavam lá penduradas fotografias do Lenine e do Gueorgui Dimitrov. Eu fui da opinião de deixar tudo como estava e introduzir uma bucha no meio de uma das deixas do proprietário do hotel, qualquer coisa como “herdei-o do meu pai que o herdou do meu avô” apontando as fotos, mas todos os outros foram pela solução do lençol. Perco sempre… 

- No fim da primeira representação, o meu saudoso Embaixador António Manuel Menezes Cordeiro deixou cair, ao vir felicitar-me, um diplomático “agora percebo tudo”. Na altura fui eu que não percebi. 

- As colunas que suportam a iluminação (candeeiros de secretária transfugidos clandestinamente de diversas chancelarias ocidentais) foram construídas com as grades que tinham levado de Lisboa os azulejos da Viúva Lamego (ponta de diamante e dente de leão) com que compus (com estas mãozinhas) o lambril da sala de jantar da residência dos nossos Embaixadores em Sófia. Ainda lá devem estar, mas a casa da Ulitza Ivatz Voivoda, 6 tem agora outros inquilinos. O que eu daria para lá ir espreitar! 

- Numa das representações, não me lembro se no primeiro ou no segundo acto, saltei uma das deixas o que atrapalhou quem contracenava comigo, felizmente sem que o público tivesse dado conta; no intervalo combinámos os dois metê-la como bucha numa das cenas da acção do acto seguinte, e assim foi. Recordo-me o autor feliz, quase aos pulos, a dizer-nos no fim: “O teatro é isto!” 

Cai (definitivamente) o pano. 

Para terminar sirvo-me de Kipling, não percebendo se aquele do If… ou o do Menino da Selva:
"Copiaram tudo o que puderam alcançar
 Mas não podiam agarrar o meu espírito" 

A)     Soube agora na net que trocou este estranho mundo, em Fevereiro de 2012, por outro que ele agora já conhece e nós não, onde o encontrarei para discutirmos, entre católico e muçulmano, sobre o porquê das coisas. Au revoir Yildirim, que la foudre soit toujours avec toi!

Abraço. 

Lisboa, 14 de Janeiro de 2016
Octávio Santos

6 comentários:

  1. Caro Octávio,
    Devias saber que estou sempre em cima de ti para não te deixar mentir, e sei que isso não te desagrada já que a minha atenção te permite continuares a merecer o respeito dos leitores. As faltas à verdade de que enferma a tua crónica levo-as às falhas de memória, naturais na tua idade, mas não te desculpo que tenhas disfarçado as tuas brancas com imprecisões que induzem o leitor em erro. Assim, para tua vergonha, passo a denunciar o que descobri ontem por ter encontrado numa gaveta a cópia dactilografada que ainda conservamos, dando-me conta das, digamos, facilidades que usaste para te safares:
    - O fundo musical não foi, como escreves, a “Catedral da Angustia”, de António Vitorino d’Almeida, mas uma parte dessa obra - O Grito -, bem como extractos de outras duas obras: 4 Estudos coreográficos, de Maurice Ohana, pelas Percussões de Estrasburgo, e Suite Gótica, de Léon Boellmann.
    - Os encenadores foram apenas dois e não todos como dizes: o autor, Yildirim Keskin, e um dos interpretes franceses, Jean Pierre Dubois.
    - Aquela que chamas “uma empregadinha”, porque não te lembravas bem quem fosse, era uma antiga namorada do comissário da polícia que entra, como cliente, no hotel no fim do segundo acto, e tem com ele o admirável diálogo que é o ponto alto do 3º e último acto, que acaba por tornar o intransigente esbirro num “quase” ser humano.
    E é tudo. Para a próxima vez tem mais cuidado para me poupares estas intervenções que não são de todo agradáveis, nem para mim nem para ti.
    Na impossibilidade de te poder abraçar, saúdo-te cordialmente.
    Octávio

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    1. Meu Caro Octávio,

      Só não erra quem não faz, quem não arrisca e o meu amigo, mais uma vez partilhou com os seus leitores um momento verdadeiramente (para quem o conhece) intenso da sua vida.

      Um abraço

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  2. Caro autor,
    Tinham que ser seus estes dois comentários...Originalidade!
    Uma vez mais, a partilha de momentos inesquecíveis da sua vida. Imagino a felicidade do autor dessa peça, levada a cena com êxito, graças à capacidade de trabalho de equipa, de improviso, de vontade,de empenhamento e de ajuda de um grupo de amigos. No meu entender,o seu conteúdo, justifica o preâmbulo desses dois grandes escritores e pensadores, bem como a referência ao autor do famoso poema «If». E por falarmos da Bulgária, não quero deixar de mencionar o grande Mestre Búlgaro, Omraam Aivanhov que, de uma forma tão simples, tanto nos ensina. Com ele me iniciei há muitos anos, nesta tão necessária reflexão sobre o Universo, a condição humana, a liberdade e a vitória do Espírito.
    Termino,dando-lhe os meus parabéns, pela sua polivalência. Até ladrilhador! (F.I.)

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    1. Cara Anónima F.I.,
      Nunca tendo impingindo pota por lula (não como coelho e detesto lebre), neste caso a originalidade é sua na atribuição que me faz do 2º comentário que, não estando assinado por mim, não é meu; anónimo nunca! Falando da minha única e definitiva experiência teatral, foi realmente muito bom. Quanto a grandes Mestres, venham eles do país das rosas ou da TVI com formação na União Nacional, por muita alva fraternidade que anunciem ou (falsa) simpatia que arvorem, nunca me encantaram. Ladrilhador e não só, sempre amador, preferindo fazer mil coisas mal ou assim assim que ser especialista de uma só e não saber onde vivo, nem tentar perceber o que me rodeia.
      Octávio

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  3. Caro autor,
    Lamento tê-lo ofendido com o meu mal entendido.Faço minhas as primeiras palavras do comentário anterior.Quanto a fraternidades,nada sei nem estou interessada.
    Reafirmo que considero Omraam um Mestre tal como Agostinho da Silva que, com uma escrita tão simples tanto me encantam. Mas posso referir outros: Helena Blavatsky, Annie Besant, Rudolf Steiner, Fernando Pessoa, Florbela Espanca,
    Alice Bailey, Huberto Rodhen, Leonardo da Vinci, Sri Aurobindo, Leadbeater,
    Platão e não vou continuar mas poderia citar muitos outros. (F.I.)

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    1. Cara Anónima F.I.,
      Como poderia eu ofender-me com a única comentadora assídua, e agora oficial, das crónicas do meu blogue? Quanto a fraternidades, brancas, negras ou rosas que sejam, cada um sabe das suas e amigos como antes! Eu, que todos reconhecem como escritor para taxistas e barbeiros, agora a fazer um esforço para alargar o universo dos meus leitores a idosas e cauteleiros, embora conheça pela rama alguns dos nomes que a inspiram, estou mais à vontade com o António Aleixo, o Carlos dos Jornais e, desde ontem, com o Tino de Rans, se bem que o meu verdadeiro mestre seja, aqui para nós, um certo Jacques II de Chabannes, dito Jacques de La Palice (ou de La Palisse).
      Octávio

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